De Mario Sá- Carneiro para o amigo Fernando Pessoa
sem nome
(...)

“Concordo plenamente com a sua critica à minha poesia menos em dois pontos secundários:

O verso “ A cada aurora acastelando em Espanha” agrada-me não pelo que diz mas pela sua cor que acho muito intensa e vermelha, cor dada pelas palavras aurora, acastelando e Espanha.

Coisa curiosa! A quadra foi feita para este verso. Os dois primeiros , que o meu amigo estima, são uma consequência deste que surgiu isolado.

O outro ponto sobre o qual não concordo é com a supressão dos apóstrofes em "cor`s e imp´rial". Bem sei que os tratados de poética condenam as elisões e que o apóstrofe é muito desagradável à vista. Entanto acho que no verso, em caso como este, há toda a conveniência em exatamente diligenciarmos fazer a elisão, porque a verdade é esta: ninguém pronuncia co-res ou im-pe-ria-al. Fazendo o verso para ser lido assim, acho a sua leitura pretensiosa e forçada. Apenas há o remédio, para evitar o apóstrofe, de conservar as letras, deixando o leitor o naturalmente não as pronunciar.

Ainda o "saltar" me sugere uma objeção. O meu amigo diz bem. Mas eu também digo bem. Este saltar é na acepção do tigre que se lança sobre a presa – é o "bondir" francês que infelizmente não é propriamente traduzido em português por saltar.

Quanto ao resto tem o amigo mil vezes razão. entanto poucas emendas farei na poesia. É que, como muitos pais, a estimo pelos seus defeitos – defeitos que ela não podia deixar de ter em virtude da forma como foi feita. Eu não tinha plano algum quando a comecei. (...)

(...) As poesias que me envia são outras maravilhas. Acho a “Voz de Deus” completa e genialmente completa na sua nova versão. Entendo que não deve hesitar em raspar os "seus" aos últimos versos do “ Passou... “. O “Poente” é das coisas maiores que sei de você . Quanto à ideia que frisa no final da “ Queda” não encontro palavras para exprimir a sua grandeza!

Meu querido Fernando , é impossível que um talento como o seu não "ilumine" algum dia! Um abraço aonde vai toda a minha admiração, todo o meu culto pelo genial artista que o meu amigo é. (...) “

(...)


As quadras ( referidas ) são do poema " Simplesmente" que o poeta Transversal comenta abaixo, achei que devia retornar aqui (25-08) e postá-las ( ajuda a entender, completa):

(...)

É partir sem temor contra a montanha,
Cingidos de quimera e d´irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada aurora acastelando em Espanha.

(...)

É suscitar as c´ores endoidecidas,
É ser garra imp´rial enclavinhada,
E numa extrema-unção d´alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.








De Sá–Carneiro para o amigo Fernando Pessoa, apresento um pequeno trecho de uma carta escrita em março de 1913( Sá-Carneiro , 23 anos e F.Pessoa, 25 anos). Acho que os dois , geniais poetas, podem nos auxiliar no tema critica/interpretação (sins/nãos)... ainda hoje. Achei o livro uma preciosidade, encontrei –o num sebo em SP e o li recentemente.



Correspondência com Fernando Pessoa / Mario Sá Carneiro; Edição Teresa Sobral Cunha.SP.Companhia das Letras,2004.



- algumas palavras do texto precisavam estar em itálico, mas não sei fazê-lo aqui, me desculpem...

Criado em: 23/8/2013 14:44
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Re: De Mario Sá- Carneiro para o amigo Fernando Pessoa
sem nome
Cara amiga Alice, o texto é fantástico, como bem disseste ser; 'uma preciosidade', foi o que trouxeste do garimpo no sebo. Uma lição, da capacidade literal e de bom senso a critica entre dois grandes poetas. (ah! como me estou longe. rs)



Ah! para abrires todos os ícones com as funções; vá para a tarja azul a esquerda da página de comentário, e em 'Selecionar', mude de 'Texto Plano' para 'DHTL Form withxCode'

Criado em: 23/8/2013 15:39
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Re: De Mario Sá- Carneiro para o amigo Fernando Pessoa
sem nome
Caro amigo Zé,

que bom que apreciaste o pequeno texto. Esta carta é extensa e especial... há 100 anos atrás os POETAS trocavam correspondência mostrando seus escritos e pedindo opiniões, sugestões, etc... um apoiava o outro. O livro é precioso, mesmo... uma excelente "lição" (atualíssimo) para quem quer escrever e ama o que faz... incentivo e respeito, ambos, gênios, ofertavam/ofertam ao universo literário.

Grata pela leitura e ajuda com as "ferramentas" do espaço,rs.

Bjs,


ALICE

Criado em: 23/8/2013 18:56
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Re: De Mario Sá- Carneiro para o amigo Fernando Pessoa
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Membro desde:
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De Lisboa (a bombordo do Rio Tejo)
Mensagens: 3755
Raramente venho ao Fórum, pelo menos comentar, por tantas razões minhas, mas não poderia deixar de vir aqui escrever qualquer coisa sobre o texto que escolheste Poetisa.

As cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (e vice versa), revela como, dois amigos tão íntimos, sempre comentaram, em vida, os textos do outro, como uma cordialidade, intencionalidade , inteligência, que deveria de servir de exemplo a todos nós.

A razão desta troca especifica de correspondência, tem a ver com o poema de Mário de Sá-Carneiro “Partida” (ou “Simplesmente” na versão original)
A primeira versão do texto é enviada por carta a Fernando pessoa em 26 de Fevereiro, mas, vai tendo sucessivas alterações, em 10 de Março nada se altera, mas em 16 do mesmo mês, a 4 de Maio e a 13 do mesmo mês existem correções ao texto inicial.
O texto final apresenta, em relação a esta última versão, algumas alterações, o que que nos levam a contar, ao todo, cinco versões existentes do mesmo poema. Houve, com certeza, muitas mais tentativas anteriores à primeira referida ou intercaladas com as cartas que iriam sendo escritas para Lisboa.

E tudo tem uma razão, Pessoa comentou este texto de Mário de Sá-Carneiro como muito próximo dos poemas de Cesário Verde (como a “Débil” de 1875), o que levou Pessoa a propor a substituição da primeira parte. No entanto Sá-Carneiro, nesta carta que publicaste, defende as suas opiniões, mas resiste à mudança.
Só a 16 de Março é que faz algumas alterações.
A primeira quadra da segunda parte,

“Sinto quase desejos de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz
Contenho-me porém. A sua luz,
Não há muitos que a saibam reflectir.”
é alterada
“Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo: a sua luz”.

Mas, em carta de 4 de Maio que Sá-Carneiro faz saber a Pessoa que a primeira parte de «Simplesmente» foi suprimida e substituída por uma quadra única:

“Ao ver passar a vida mansamente
Nas suas cores serenas eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.”
Esta nova quadra resume as várias censuradas, dizendo o mesmo.

Tudo, enfim, se resumia a estilos ou a correntes literárias,a escrita de Mário de Sá-Carneiro situava-se mais perto do passado, sobretudo do simbolismo, de um certo ambiente decadente de fim do século, e Pessoa atua sempre no sentido de o afastar da tradição para o novo, o futuro.

Espero ter deixado aqui algum contributo, para reforçar, não só o estudo, ou exploração de poesia, como para algo que tantas vezes faz falta aqui no Luso, uma crítica construtiva dos textos que se postam diáriamente, reforçando o que escreveste Poetisa “Acho que os dois , geniais poetas, podem nos auxiliar no tema critica/interpretação (sins/nãos)... ainda hoje”. Peço que me desculpes por me ter alongado. Obrigado.

Agradeço-te

Criado em: 23/8/2013 19:58
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"Floriram por engano as rosas bravas
No inverno:veio o vento desfolha las..."
(Camilo Pessanha)

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Re: De Mario Sá- Carneiro para o amigo Fernando Pessoa
sem nome
Caro Poeta,

agradeço o excelente contributo. Acho que todos os leitores do tópico ficam agradecidos pelo texto (seu) que complementa o primeiro( e, esclarece a troca de correspondência entre os dois amigos).

Gostei muito, obrigada pela intervenção... pertinente, positiva e produtiva.


Um abraço,


ALICE


Criado em: 24/8/2013 19:54
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Re: De Mario Sá- Carneiro para o amigo Fernando Pessoa
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27/12/2014 5:02
Mensagens: 1
No primeiro conjunto de versos, percebemos uma declaração explícita ao Amor, isto é, atenção total ao sentimento amoroso e o cuidado que devemos prestar a esse sentimento, haja vista o nome do soneto (de fidelidade), no sentido de valorização, adoração, e que mesmo em vista de outros “encantos”, o Amor não deve esmorecer e sim, fortificar-se em seu pensamento.








Criado em: 27/12/2014 5:23
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Re: De Mario Sá- Carneiro para o amigo Fernando Pessoa
Novo Membro
Membro desde:
10/2/2015 17:23
Mensagens: 3
Dois grandes gênios! :)
"A cada aurora acastelando em Espanha"
Lindíssimo!

Criado em: 10/2/2015 17:27
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