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A vara e os livros

 
Meu pai era operário do DAER – Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem, ficando pouco tempo em casa. Morávamos na Vila Jerônimo Coelho e eu estudava na então Escola Municipal Parque e Grêmio dos Viajantes, hoje Escola Municipal PE. José de Anchieta.
Criado conservadoramente, sem envolvimento com a piazada das redondezas, mesmo porque há 35 anos, aquela parte da cidade era praticamente área rural, a ida para a escola proporcionou-me contato com um mundo novo. Uma dessas novidades foi o futebol das peladas.
Certo dia, após as aulas, demorei-me jogando futebol com a gurizada. Para minha vergonha essa aventura acabou com o aparecimento de minha mãe, portando uma bela vara de erva-de-corvo.
Tentei conversar, mas não teve argumento que servisse; apelei para as pernas, mas estas acabaram levando umas varadas, antes que conseguisse distanciar-me da fúria materna.
A partir daquele dia mudei meu comportamento. Futebol, só depois de comunicar em casa que ia jogar, onde e com quem. Para ocupar meu tempo, passei a ler os poucos livros que tínhamos em casa, a começar por uma velha edição da Bíblia.
Hoje, quando escrevo estas linhas desalinhavadas, minha mãe agoniza no Hospital São Vicente. Quando elas forem publicadas é possível que não esteja mais entre nós.
Já não tenho mais 7 anos. Tenho filhas, uma delas com essa idade, viciadas em livros, como eu. Chegam a dormir sobre eles.
Minha esposa, infelizmente para mim, não morre de amores pela leitura. Às vezes que ela reclamava perante minha mãe da minha bibliomania, Dona Crécia, com um sorriso orgulhoso, respondia prontamente: “Eu sou culpada disso. Eu e uma vara de erva-de-corvo...”
Obrigado, mamãe! Obrigado, pelas varadas que levei naquele dia!
NOTA DO AUTOR: O artigo acima foi publicado à página 8 de O CIDADÃO do dia 25 de abril de 1997. Leocrécia da Silva Monteiro, minha mãe, falecera no dia anterior, enquanto o jornal estava sendo impresso.


poeta brasileiro da geração do mimeógrafo pertence a diversas entidades culturais do brasil e do exterior estudioso de história é autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais literários e históricos

 
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PAULOMONTEIRO
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 25/11/2009 12:31  Atualizado: 25/11/2009 12:31
 Re: A vara e os livros
Caro Paulo, é sempre um prazer te ler. Essas prosas do seu cotidiano. Essas vivências arrancadas da lembrança me fazem recordar do uso na escola da palmatória pelas 'ensinadoras' lá em Valença, interior do Estado do Rio de Janeiro, quando ainda era praticamente roça. Peguei resquícios dessa prática estúpida, quando na má caligrafia e ou na correção da leitura. Já umas varadas de erva-de-corvo, dadas por uma mãe... acho que nem dói tanto. rss

um fraterno abraço amigo poeta.

Silveira


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 25/11/2009 15:25  Atualizado: 25/11/2009 15:25
 Re: A vara e os livros
UM ABRAÇO PARA SI PAULO E UM TEXTO AGRADÁVEL DE VER E DE SENTIR COMO SÃO AS SUAS ESCRITAS.
AMANDU