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O PRIMEIRO ENCONTRO

 
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O menino magrelo apanhou os troncos de lenha na pequena vegetação de caatinga a pouco mais de de duzentos metros da casa onde morava com os pais, catando os mais grossos e fortes, e procurou acomodar com cuidado no lombo do jumento que calmamente pastava amarrado no juazeiro. O dia se mostrava especialmente ensolarado e muito quente, a terra parecia estar pegando fogo e dela subia algo como se fosse vapor fluindo de uma chaleira fervendo. A atividade árdua fazia o garoto suar em bicas e o corpo ensopado empapava com a poeira que ia e vinha como um sopro quente de uma fornalha. Apanhava os galhos das próprias árvores típicas da vegetação caatingueira, dobrava-os com força e quebrava um a um quando não os descobria espalhados aqui e ali. Por vezes andava muito por entre os espinhos à procura da lenha ideal para sua atividade cotidiana, até conseguir seu intento. Levava boa parte da manhã nesse intuito.
Depois de pronta a primeira etapa do trabalho daquela manhã ele passou o braço pelo rosto para enxugar os poros molhados do suor que pingava pela roupa e olhou o horizonte, franzindo a testa para encobrir a claridade daquela manhã dominada pelos raios solares. Súbito, o animal ficou excitado, remexeu-se e emitiu um som inesperado de satisfação ao avistar, ao longe, uma fêmea vagueando displicente por ali. O seu desejo era correr atrás dela, como ficou evidente pela agitação que demonstrava.
O menino percebeu o movimento, passou a mão delicadamente no focinho do bicho e resmungou:
-Calma, Matinguê, calma, ainda temos muito trabalho hoje, não há tempo para diversão.
O animal bufou como se entendesse mas deixou o olhar meio tristonho seguir os rumos daquela belíssima jumenta solitária, indiferente ao peso da lenha sobre o seu dorso magro. Por fim, zurrou num ímpeto como se suspirasse.
O céu, sem qualquer sinal de nuvem naquele horário da manhã, mostrava-se de um azul exuberante, e era possível enxergar com nitidez alguns urubus voando bem alto, tranquilos, na paisagem celeste. Era ano de estiagem no Nordeste e até aonde os olhos podiam alcançar só a desolação se tornava visível: chão esturricado, caatinga seca, de galhos quebradiços que serviam apenas como lenha para acender os fogões de barro das residências simples na localidade, além de inúmeras carcaças de animais que morriam de sede e fome no abandono.
Com apenas 13 anos mas já habituado à vida dura, naquele dia o menino tinha saído muito cedo de casa com o objetivo de apanhar lenha para vender na cidadezinha, precisava ganhar alguns trocados para ajudar seus pais a, pelo menos, diminuir as despesas com ele proprio. Os pais tinham emigrado para a cidade de Mossoró oriundos do pequeno município de Upanema, ambas no Rio Grande do Norte, e tudo se tornara difícil na vida da família. Filho caçula temporão, somente ele e seus pais moravam sob o mesmo teto, porque os demais irmãos eram adultos e já casados, tinham suas próprias familias. De origem humilde, a ele restava participar também com seu esforço laboral para complementar a renda familiar. O trabalho, para ele, fazia parte de sua existência desde tenra idade.
Depois de amarrar bem os dois feixes de lenha de ambos os lados do jumento, ele montou no animal e bateu levemente em sua anca forçando-o a trotar. Passou em frente à casa onde morava, para lá dando uma olhada furtiva e desinteressada, e retirou do bolso a trouxinha com pedaços de rapadura, dela sacando um deles que imediatamente colocou na boca. Lá adiante, pegou a latinha cheia dágua sobre o lado direito da cangalha, entornou e bebeu ávidamente.
O longo caminho a ser percorrido na faina diária não o desanimava. Vendia uns paus de lenha aqui, outros mais adiante, por vezes voltava para casa ser ter vendido nada, cansado e abatido, mas invariavelmente no dia seguinte pegava de novo no batente saindo a bater às portas com a lenha sobre o lombo do jumento sem reclamar.
Nesse dia especial de sol em brasa, as primeiras residências para quem ofereceu a lenha disseram não, porém o dia ainda estava longe de terminar. As negativas não mais o intimidavam, habituara-se.
Avistou uma casa na esquina de um bairro de classe média e para lá se dirigiu cheio de esperança. Muita gente que morava nas redondezas ainda usava fogão a lenha e costumava comprar os feixes dos vendedores ambulantes que circulavam com o produto pela manhã em carroças ou em lombo de burros.
Apeou, foi até o portão da casa e bateu palmas gritando a plenos pulmões: "Ô de casa!"
No interior da casa, a garotinha bonita e sorridente tinha comemorado o décimo aniversário na semana anterior e estava toda feliz pelos presentes recebidos na festinha promovida pela mãe. Brincava alegremente com a nova boneca que ganhou naquele dia especial de sua vida quando escutou alguém batendo palmas lá fora e gritando. Sapeca mas cuidadosa, a mãe na cozinha ocupada com os afazeres domésticos, a garota foi até a janela e verificou quem era. Ao ver aquele menino de calção e camisa puídos e já bastante usados e também um tanto sujos, ele coberto de suor e poeira, o rostinho franzido devido ao sol em sua claridade brutal, magro e certamente faminto, ela lá de dentro da casa gritou para ele:
"Tem esmola não, perdoe!" Riu encantada com a própria piada e o encarou altiva.
Os dois se olharam e se analisaram por instantes, ela no conforto daquele lar com sombra e água fresca, a vê-lo da janela, ele lembrando uma figura melancólica de um filme triste qualquer, como que esquecida na rua empoeirada e sob o causticante sol inclemente.
- Estou vendendo lenha, sua mãe quer comprar? Perguntou ele, alheio ao sarcasmo dela.
- Tem esmola não, perdoe! Repetiu a garota rindo.
O menino enxugou novamente o suor do rosto com o braço, tornou a montar o jumento e se foi sem nada mais dizer.
Essas foram as circunstâncias do primeiro encontro entre meu pai e minha mãe anos antes de se apaixonarem um pelo outro.

Gilbamar de Oliveira Bezerra

 
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GilbamardeOliveira
 
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