Textos : 

preciso enlouquecer

 
Preciso de enlouquecer. De tornar ósseo o que escrevo. Ando nisto há dias.
O Herberto diz-me que talvez consiga se engolir uma lâmpada acesa.
Mas só que o herberto havia de saber que as lâmpadas provocam má digestão.
O herberto não percebe de micro-organismos ambulantes.
o herberto é toda uma ciência que ainda há-de vir.

Preciso enlouquecer. De esquecer tudo o que me lembra, alimentar o sangue com o que mais bárbaro existe por aí. As pedras que revestem sepulturas sempre são bons motivos de contemplação. Eu olha-as com a ternura de uma enxada e rasgo a face, como podia rasgar este céu para que caiam os livros.
Os poemas não precisam de comprimidos para que se entenda a sua dor. Sofrer é uma longa expressão, longa caminhada por esses montes desconhecidos e silenciosos adiante. Por que me fogem as mãos para o pescoço? Lá fora o frio faz atrasar um navio, e as mãos, tão trémulas, deixam de sonhar. Quem nasce rio morre rio?

Preciso enlouquecer. Tirar proveito dos tsunamis, trocar os pés pelas mãos e subir a rua que desce. Não basta pôr um dedo na alta voltagem para que o grito saia como uma bala. Gritar exige uma dor mais além. A poesia não é grão que se colha por aí. Ela compra e vende ao mais alto preço da dor, agitando a vara contra as palavras, num redemoinho de metáforas com cabeça, tronco e asas. As explicações tornam o poeta eunuco.

Nunca a vida soube dizer que é, quem foi. Uma imagem é sequência brutal de filhos a nascer à deriva. Por que me vês tão mar? Da vida conheço as grandes canções, os pescadores dos livros de História.
Se as flores possuem tímpanos é hora de falar da loucura com o sexo bem atiçado. Eu digo que a morte é estúpida pela mania que tem em dizer volto já. O único segredo é o amor. Que nos faz sonhar sem selo de garantia.

Preciso de enlouquecer, de tornar óbvio o sangue das palavras, dar uma passa num poema bastante enrolado e cair dentro de mim em serena manhã.
Do que sou falarei mais tarde, quando nascer a verdade na amputação do silêncio. Uma mulher abeirou-se de mim, trazia uma tocha acesa segura pelas duas mãos, perguntou-me, você é louco? Calado, dei quatro voltas ao pescoço e ofereci-lhe a minha cabeça.
 
Autor
flavio silver
 
Texto
Data
Leituras
2087
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
4 pontos
4
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 22/01/2010 11:39  Atualizado: 22/01/2010 11:39
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: preciso de enlouquecer para flávio
como sempre...gosto muito de te ler.chama-me louca...

beijo

alex

Enviado por Tópico
.:Cris:.
Publicado: 22/01/2010 13:03  Atualizado: 22/01/2010 13:04
Novo Membro
Usuário desde: 11/01/2010
Localidade:
Mensagens: 2
 Re: preciso enlouquecer - Flávio Silver
*As explicações tornam o poeta eunuco. - verdade!
*tornar óbvio o sangue das palavras. - está esperando o quê?
não passiva, não uniforme, rica em acidentes e subidas e descidas
a tua escrita provoca inquietude.
tem sempre algo à acrescentar, sempre!

beijo.


Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 25/01/2010 14:20  Atualizado: 25/01/2010 14:20
Colaborador
Usuário desde: 25/05/2009
Localidade: Porto
Mensagens: 2220
 Re: preciso enlouquecer
Boas!
Quando penso que esta ou aquela é a passagem mais relevante do texto, engano-me redondamente: o teu texto esta filha da putamente bem escrito.
Talvez o Herberto seja toda uma ciência que ainda há-de vir, mas sinto-te mais próximo dele do que qualquer outro...

Beijo.