Prosas Poéticas : 

A FAMÍLIA 33 (parte 1 'Segunda-Feira')

 
, não tinha começado nada mas quando deu por conta já estava pra lá do meio do processo, ele era um ótimo amigo incompreendido e este já devia ser o sétimo charro daquela segunda-feira monótona pra todo mundo menos pra eles. Segunda-feira virou dia sagrado de despirocar sem limites tangíveis ou traçáveis, foi como um protesto muito íntimo e inoportunamente sigiloso que faziam à normalidade, à adequação, e criaram em sua intrépida ingenuidade que aquilo era um trabalho importante a ser feito. Quem mais decifraria em extremos decibéis às intrincâncias daquele caldo fumegoso, quem mais altissonaria aquela dança dos faraós no subwoofer dum vectra prata tão burguês e banal, quem mais redimiria a poeira sobre as prateleiras preenchidas de proust e ainda o faria sem intentá-lo? Quem salvaria o mundo de dentro de seu casulo alienado, só por ter aberto bem os sentidos pra olhar pra fora, além da vista visível?

Outra vez selaram vidros do veículo. Numa rebarba tranquila do bairro, livre de câmeras de vigilância e transeuntes conceituosos, faziam outra sauna automobilística. E miles davis torava no aparelho. Depois de uns dez minutos o motorista ligava o motor pra evitar a falência da bateria, mas nada de ventilação interna nesse ínterim, o que queriam era tossir fora todo desgosto que saía doidamente doído dos estômagos amainados de luz solar. Ardiam os olhos no fumacê e eles riam descontroladamente por um minuto sem motivo, mas com determinação, o riso distendia a percepção e os sintonizava a algo ou alguém cuja frequência ressoava lilás de todo caos.

Quando o pito se havia findado, ainda esticavam o calor abrasante da cápsula psicodélica, aspiravam arfando arbitrárias ânsias de transbordamento e multiplicavam o efeito da suntuosa receita divina. O colírio deles era em verdade o que os avermelhava furiosamente aos olhares, alcançavam a suprema velocidade da vida exatamente por relaxarem aprumados na mais dileta e silente ignomínia, na mais plácida e lúdica demência.

De manhã estudava, ou ao menos ia à localidade onde entes se reúnem pra estudar. Sempre atrasado e com um salutar desdém que incomodava aos docentes mais éticos, por assim dizer. Lauro não tinha tempo pra aprender como que as pessoas viviam suas vidas normais, estáveis. Ele tinha descarrilado do comum e agora vivia uma síncope paralela dos sentimentos, era um estranho no ninho, um pária tão venenoso quanto sedutor, um pequeno demônio meio mouro meio paraibano. Às vezes um professor notava o aluno escrevendo absorto em seus papéis, esperançava-se de que ministrava uma aula interessante ao transviado descabelado discreto no meio da sala, mas depois dava-se conta, o jovem espúrio parecia redigir algo fenomenalmente distante do assunto tratado à sala. O livro que ele escrevia nas intermitências do diploma ia além até mesmo de sua compreensão, já que trazia do inconcebido a narrativa quase alinear do pulso terreno.

Depois do almoço pegava as chaves do carro que ganhara do avô por ter entrado na faculdade e ia novamente quebrar todas as confianças e trair todos os investimentos se insuflando de enigmas soterrados da cultura sincretista. Entre quânticas e kardecismos concluíam a magia da realidade e se inconformavam das cores acinzentadas que a maioria costumava pincelar à atmosfera dos dias. Eram melhores amigos e Renato, mais velho que Lauro, costumava precisar de muito mais paciência pra desenrolar os assuntos, já que já tinha passado dois anos estudando engenharia antes de desistir do curso. O mais novo sorvia às ciências deleitosamente e sempre que podia trazia um novo bootleg pra apreciarem.

Um dia descobriram que a vida não é material e sim digital, e sonharam longe, com a imortalidade plausível, funesta e maravilhosa esperança dos esclarecidos. Quem sabe, antes que morressem, poderiam transferir toda memória pra um disco rígido e renascerem como entidades virtuais infinitamente longevos como consciências que transcenderam à carne.

Tudo ia bem e descobriram a beleza das festas de trance ao ar-livre. Aline, loira encaracolada de voz rouca e grave, apresentou o círculo diminuto mas não fechado de amizades da bate-estaca. Era como perder a virgindade mas sem mexer com sexo, aquela cadência violenta que mais parecia estuprar que afagar, o compasso reto e seco da harmonia dos fortes. Os três aportaram no sítio inusitado lá pelas quatro da manhã, quando um verde sutil começava a ensaiar a alvorada. Uns duzentos quilômetros distantes de casa e do centro comercial paulistano, aguardavam na fila de carros. Renato acendia um generoso:

‘ Velho! Vamo descer aí pra tostar, que essa fila não anda nunca!’

Aline preferiu dormitar no banco traseiro, pra entrar mais empolgada, imagina-se. Lauro e o amigo recostaram ao capô da caranga e fumegavam tranquilos. Três espaços ocupados à frente mais dois amigos faziam o ritual do lado de fora do carro estático. No meio da função decidiram terminar o serviço passando a bola pros brothers ali na frente. Não trocaram nomes, só idéias. O charro dos desconhecidos não era muito bom, ao menos não tanto quanto o deles, que estava bem honesto, então um senso de dádiva brotou dali mas apesar disso completamente além deles. Como a dádiva duma purificação do mundo que eles concediam sem fazerem a mínima idéia disso.

Quando já queimavam as pontas dos dedos e decidiam lançar a réstula a Jah a fila de carros subitamente fez-se visualmente movente uns quinze metros em frente. A despedida foi quase inexistente, uma troca de olhares muito séria mas também sincera e tranquila, e um falou irmão, nos vemos lá dentro. Correram pro carro e quando a fila parou eles eram o segundo veículo antes da portaria do estacionamento. Lauro brincou de coxar mais um mas a segurança fardada do evento espreitava já muito próxima, desencanaram.

Aline espreguiçou-se soberanamente, deliciosa. Sentou-se no assento, esfregou os olhos, bocejou e perguntou atonal:

‘Ainda estamos aqui?…’

Não houve resposta até que Renato deu uma risadinha, à tôa. Ela reparou pelo espelho do motorista as primeiras luzes do novo dia às costas deles, exclamou uma alegria de vejam e eles se alegraram. Aline parecia imersa no infinito que a comandava, sem culpas nem dúvidas, ela dava a impressão de que sabia muito o que queria da vida, ou mais que isso, sabia muito bem de que se tratava realmente a vida. Na prática, se se fosse resumir, simplesmente poderia-se dizer que ela amava dançar.

Não era uma rave grande, o equipamento não era de luxo, o público não ultrapassava trezentas pessoas. Mas era dois mil e dois e nesses tempos o espírito antropófago do evolucionismo pintava e bordava nas trances, o negócio era só coisa fina só, ganhava o produtor que mais espiritualizasse. Outros tempos.

Foram primevos movimentos, momentos clássicos, instantaneamente. Era como viver um dia favorito e sabê-lo, e também saber que o próximo dia como aquele haveria de se tornar então o favorito, e assim toda vez que o feito se repetisse.





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alikafinotti
 
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