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Misérias humanas (uma espécie de conto verdadeiro)

 
Nasceu por acaso, do ventre de uma mulher que nem de si sabia tomar conta, quanto mais de alguém. Portanto, deve ter sido também por obra do acaso que não pereceu aos primeiros meses de vida...
Sabem o que é ser-se eternamente criança, preso dentro de um cérebro oco mesmo que o corpo tenha crescido e se transformado no de um adulto? Mas que nunca, em tempo algum, o será. Há coisas que não se podem mudar ainda que desafiem as leis da perfeição da natureza, e que, por mais que se tentem esconder dos olhos do mundo, elas existem! E o pior, é que podem muito bem vir a ser uma fonte de outras desgraças...

Foi o fruto de um de muitos encontros fortuitos e desgovernados onde os apetites sexuais falavam mais alto e a razão se ausentava para não ter de prestar contas à justiça da consciência...
Essa mãe, que por um erro fatal da tal natureza (im)perfeita nunca o deveria ter sido, por não ter condições psíquicas, morais e materiais suficientes para lhe dar uma criação condigna, foi a pobre criança que teve de se fazer adulta à pressa e à força pelos seus próprios meios; caso contrário, teria tido quase de certeza, uma sorte ainda mais negra do que aquela que lhe foi reservada.
Da escola, trouxe a terceira classe bastante sofrida e com muita barriga vazia de almoço que a sua lancheira não levava. Razão pela qual a abandonou mais cedo, por já não conseguir segurar mais a vergonha que passava... é que, para além de não levar almoço e ter de aceitar o que a professora, condoída, lhe oferecia do seu, ainda tinha os pés descalços e a estrelejar de frio, por culpa da geada com quem dividia o caminho.

De todos os rostos que a miséria possui, o mais flagrante, é sem dúvida alguma, o que retrata a nudez e a crueza da miséria humana!

Aos nove anos foi mandada para servir em casa de uns primos em Lisboa.
Todos os dias carregava inumeras bilhas de leite pesadas, em cima de uns ombros estreitos agarrados a um corpo franzino de magro. Fazia-o obrigada, pois fora esse o acordo com a promessa de envio dos seus ganhos no fim de cada mês, direitinhos para a morada da mãe que por eles esperava, pois que havia por lá já mais uma boca para alimentar...
Foi assim durante anos. Até que um dia conheceu um homem mais velho, que lhe prometeu o céu que nunca tinha tido. Não pensou muito e resolveu aceitar a proposta que lhe pareceu honesta, mas o céu era outro que mais parecia um inferno onde se afundou por mais de trinta anos até se conseguir libertar e regressar à cidade grande onde tinha duas filhas.
Ali, ainda haveria de ter dias mais risonhos e finalmente alcançaria a paz, o conforto e a tranquailidade tão merecidas, como forma de pagamento por uma vida amargurada e pouco feliz.


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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cleo
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Enviado por Tópico
arfemo
Publicado: 28/04/2010 22:31  Atualizado: 28/04/2010 22:31
Colaborador
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 Re: Misérias humanas
..há quem divida o caminho da vida entre o vazio e a cor; outros ainda, entre o vazio e a miséria; e existem, riem, choram e até sonham (diria o eugénio de Andrade). Outros nem isso, como narra o teu excelente texto!

beijo -)
arfemo

Enviado por Tópico
gil de olive
Publicado: 28/04/2010 23:52  Atualizado: 28/04/2010 23:52
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 Re: Misérias humanas (uma espécie de conto verdadeiro)
Tema tristinho.Mas o texto em si ficou muito bom!Aplausos!

Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 30/04/2010 16:46  Atualizado: 30/04/2010 16:46
Usuário desde: 02/03/2007
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 Re: Misérias humanas (uma espécie de conto verdadeiro)
Meus amigos, arfemo e gil de olive
Muito obrigado pelas vossas leituras e comentários a este meu conto que se baseou numa história de vida bem real.

Beijo