Poemas : 

Sob epígrafe de Ruy Belo

 
O frio abre a praça


Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Ruy Belo


1.

a fechadura esquece a chave o tempo
deixou-lhe no regaço
uma lembrança
que teimam as ruínas acordar

2.

por que imagens se grava a solidão
na porta abandonada
pelo estio
onde a mulher se senta na memória

3.

a praça alegoria que se molda
por pombas repousadas
no coreto
como dedos pousados na carótida

4.

percorre a linguagem dos escombros
entre sombras
erguendo no silêncio
o possível resgate de um poema

5.

na colheita de um verso a pulsação
de uma sílaba
aberta ao desespero
porque raptada ao magma do silêncio

6.

uma ave como folha derradeira
despede-se da praça
como faca
degolando as palavras sitiadas

7.

e vamos peregrinos do verão
perscrutando o sul
aves que demandam
as mãos que ergam do mar a sinfonia

8.

persiste uma memória de algemas
suspensas nas janelas
onde o frio
se estende como roupa no estendal

9.

de passagem os lábios visitam
as cores da palavra
casa ou canto
quando o sol se debruça no horizonte

10.

oclusa a casa é veia cintilante
sob as cortinas que dançam
pelas mãos
de um fogo exposto ao gume de um olhar

11.

as urbes são moldadas pelas ruas
as ruas pelas casas
e estas dizem
das molduras colhidas pelo outono

12.

há um passo apressado nos passeios
um pássaro que cia
cria a queda
para a morte da sede da cidade

13.

não morrem nos poemas as palavras
antes na voz dos homens
quando perdem
da árvore a lucidez à raiz presa

14.

quando a casa entra em nós por nossos passos
dilui-se a rua aos poucos
como estore
que suspende o caminho para a luz

15.

pelo espelho renasce a tua face
outra corpo de verso
plena música
nas águas de um lago por haver

16.

entra por uma fresta o último acorde
que do velho coreto
se desprende
enquanto na lareira a voz acorda

17.

quando a casa se vira para a rua
como livro que se abre
rente ao olhar
acorda o espanto acorda para o mundo

18.

e da cor consentida pelo frio
veste-se a casa
enquanto a praça a
coteja sob o céu quando é Novembro

19.

um potro galga a cerca do poente
pelo dorso das águas
procura
a perfeita palavra a poesia

20.

novembro que ao inverno rouba o hálito
que ao outono empresta
há-de pela praça
semear a paleta do poema



Xavier Zarco

 
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Xavier_Zarco
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/05/2010 16:20  Atualizado: 03/05/2010 16:20
 Re: Sob epígrafe de Ruy Belo
Desta série de vinte poemetos, retenho o 4 e o 5.
Excelentes.

DM

Enviado por Tópico
Julio Saraiva
Publicado: 03/05/2010 16:35  Atualizado: 03/05/2010 16:35
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Usuário desde: 13/10/2007
Localidade: São Paulo- Brasil
Mensagens: 4206
 Re: Sob epígrafe de Ruy Belo
Ruy Belo, que chegou -e você bem sabe, camarada zarco - a ser doutor em direito canônico por roma, é uma dos melhores poetas da nossa língua. a irreverência dele é notável. e você o homenageia com incrível mestria.

abraço,

j.

Enviado por Tópico
anakosby
Publicado: 03/05/2010 20:26  Atualizado: 05/05/2010 03:47
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Localidade: Torres
Mensagens: 1739
 Re: Sob epígrafe de Ruy Belo
Versos povoados de imagens que suscitam a viagem da imaginação. Um vôo pelos novembros de todas as praças.
Lerei mais Ruy Belo, com certeza, já fará parte de meus autores favoritos. Como é bom ler-se poesia de qualidade sabendo que o poeta está do outro lado ao alcance de um pixel.
Grande abraço.

Enviado por Tópico
Henricabilio
Publicado: 05/05/2010 08:32  Atualizado: 05/05/2010 08:35
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Mensagens: 6963
 Re: Sob epígrafe de Ruy Belo
Olá Zarco!

Estas apresentações de "sob a epígrafe de..." estão 5 estrelas.
Há muito que percebi em ti uma rara qualidade poética: Sensibilidade versus rigor.
Frequentar a(s) tua(s) página(s) é uma aula de literatura!

Vivo a poucos km da aldeia do Ruy Belo - e até já estive com a sua viuva e filhos num encontro literário na Biblioteca de Rio Maior - mas não o conheci.
Além disso o banco onde trabalhei situava-se na Rua Ruy Belo...

Para complementar este Belo(!) trabalho deixo aqui esta frase:
"É pela poesia que nós v(o)amos"!

Favorito, claro!

Grande abraçooo!
Abílio