Crónicas : 

A floresta muda

 

- Catarina – chamou, sublinhando a urgência no prolongamento das sílabas que o eco lhe devolvia, voltou a chamar, e voltou… Na floresta subitamente quieta só ouvia o som da sua voz, mas da Catarina, nada. O vento ameno que abanava as agulhas dos pinheiros cessou de repente e com ele o cantar dos pássaros, o restolhar das folhas e das heras que cobriam o chão fizeram eco ao mutismo reinante. Nunca tinha experimentado esse silencio vindo do nada, gélido e petrificante, olhou o caminho de onde vinha, na encruzilhada que tinha acabado de desfazer, já não se lembrava que caminho o levara ali, olhou em volta pensando que não fosse esse caminho, talvez se tivesse confundido e afinal viesse do caminho que empreendia em frente, mas nova encruzilhada, esta perfeita nos ângulos sinuosos. Olhou o céu azul sem nuvens…e sem sol. Mas os seus raios perpassavam as folhagens mas sem direcção definida que lhe permitisse vislumbrar a localização. Talvez a noite trouxesse as estrelas, ou na pior das hipóteses o dia seguinte traria um novo sol.
Começou a caminhar por onde lhe parecia que tinha vindo, tentava reconhecer algo de que se lembrasse, reconstituir uma imagem de uma pedra, de uma árvore, de um arvoredo e caminhou, caminhou… Em cada encruzilhada tirava à sorte na esperança da boa fortuna lhe indicar o caminho. O passo foi-se tornando mais lento à medida que o cansaço o invadia, olhou um ribeiro estranho cuja água corria mas não ouvia o seu marulhar de encontro à pedrinhas que lhe formavam o leito e começavam a reflectir o luar da noite, lembrou-se das estrelas, da lua, talvez servissem de pêndulo de bússola neste deambular que o enlouquecia, correu em busca de uma clareira, sempre olhando o céu, azul noite reflectido na água que bebeu mas não lhe mitigou a sede.
Um pavor crescente começava agora a apoderar-se dele, na fuga que encetara ou na busca que acabara, que sentia terminar, correu mais, sempre a correr desviando-se das árvores que a luz recortava em testemunhas silenciosas do seu pavor, calcando fetos, arranhando-se no tojo, indiferente à dor, de repente…
De repente o vazio aos seus pés, ficou sem chão, sentiu agora o vento que lhe insuflava as roupas na descida vertiginosa que começava e o auxiliava a manter um equilíbrio precário de sustentação corpórea no ar que rasgava na queda sem fim.
Catarina esperava-o lá em baixo de órbitas esgazeadas na ironia suprema de quem cai e fica de braços abertos como quem espera abraçar alguém.
 
Autor
jaber
Autor
 
Texto
Data
Leituras
1069
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
6 pontos
6
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
sampaiorego
Publicado: 08/05/2010 22:01  Atualizado: 08/05/2010 22:01
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2010
Localidade: algures virado para o mar com gaivotas
Mensagens: 1147
 Re: A floresta muda
também tenho uma floresta que muda todos os dias – muito queria voltar para a floresta que me viu nascer. tinha monstros maus. mas todos tinham nome.

abraço

sampaio(r)ego


Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 08/05/2010 22:21  Atualizado: 08/05/2010 22:21
Colaborador
Usuário desde: 01/09/2008
Localidade:
Mensagens: 669
 Re: A floresta muda
Ás vezes os nossos caminhos parecem estar escritos. Claro, não estarão. Mas que há coincidências e coincidências compensadoras, lá isso há. E desta vez houve.
Bem urdida crónica, que já não me surpreende.

O nosso abraço


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/05/2010 16:35  Atualizado: 09/05/2010 16:35
 Re: A floresta muda
Seu texto é fantástica, estou perplexa com a descrição, perfeito! Parabéns!