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A confusão do absurdo

 
Esse sono e essa confusão que sinto, esse sonho e contusão que curo, esse abono e abandono que procuro... Prêmio e premeditação, abono e ônus, benefício e precipício, gratificação e gradativa ratificação da injustiça institucionalizada: suplício!, automartírio!, gain and pain – esse sonho e respectivo sono, enfim, e sua contraparte de pesadelo medonho: são duas faces de uma mesma moeda, de um mesmo zahir, dois lados, dois abismos, duas enseadas para um mar de álcool, duas baías, duas angras belicosas a receber navios de guerra de mundos espirituais de um apocalipse norte-americano, petrólatra e ditador da democracia, dois cristos, duas marias, dois lados escarpados de um penhasco sem fim para dentro do lado negro da política obtusa desse mundo em que vivo; esse prêmio ou sono ou adormecimento de um lado, e essa premeditação do terrível de outro, essa macabra ratificação da injustiça, esse ônus de Vênus, essa arte de Marte... juntos formam duas faces esfaceladas, duas muralhas escaladas com exércitos a resistir, barrancos das ruas de Ouro Preto, escudos das forças de um Império Português avassalador, dois lados de uma mesma moeda ou idéia fixa ou mania ou obsessão de espíritos ignotos que perderam guerras antigas, o mérito e o pagamento, a fome e o alimento, o microfone e o comprometimento, o comício político à beira do precipício, uma moeda a girar no vácuo da experiência bucal, seus lados ou superfícies são intermináveis como a planície, são penhascos para o abismo anal da carne incognoscível, da bunda intangível, do sexo genuflexo, são paredes do Apartheid, são muralhas da China, são a distância do ataque a Pearl Harbor, são faces de um mesmo crime e desejo, o amor e o medo.
Por que não te abraçaria? Ao ter a moeda na mão, vejo você toda branca, sangrando por dentro e com o olhar mais apagado do mundo – o olhar que as plantas têm quando mesmo verdes estão já a morrer – afogada na poeira mais árida, com um olhar sem música e um braço sem abraço, com um coração sem coragem e uma coragem sem aço – virgem das lutas mais importantes da História, virgem das vidas que poderia ter vivido através de encarnações fantásticas em tempos de extrema violência, revolta e epidemia – vejo você toda branca na cama desfalecida, com os cabelos espalhados num lençol infinito de cores cambiantes que depois de um certo gemido transfiguram-se no branco mais puro de tua morte. Por que não te abraçaria em teu leito de morte, eu que nunca pude abraçar-te em vida? Teus olhos grandes e maravilhosos, eroplégicos, gastados pela decepção, acabados, entregues à estagnação de uma lágrima volumosa a me espelhar com toda a dor que a imagem pode recuperar... Ah, por quê, meu senhor Jesus Cristo, por que meu corpo recua e minha personalidade se tranca no ergástulo da inexpressividade ? Como pode a dor da perda engolfar-me assim num tal solavanco tão terrível e empedernido? Justo eu que sempre desafiei a dor, que sempre fui acostumado com a importante tarefa de doer, que sempre fui impassível diante do trágico! Uma âncora prende minha garganta ao chão. Uma espada corta meu coração. Dois aviões no coração da América. Um Iraque e duas invasões. Dois Vietnãs. Uma Alemanha e duas populações. Duas Igrejas. Dois braços e um abraço. Dois cavalos e um só laço. Confederados e Unionistas. Muçulmanos e Judeus. Dois olhares e um adeus. Dois lados de uma mesma dor: a moeda cai de minha mão, é a liberdade de Deus – “por que eu não te abraçaria? Só que... eu não consigo. Eu não consigo”. – três pontos e uma reticência, três reticências e seus desencontros: a moeda cai, de minha mão Deus se desprende – para cair no vácuo do omnipossível.
Uma lágrima despenca dos grandes olhos azuis. Ela toda branca. Sangrando por dentro. E todos aqueles cabelos negros vastíssimos espalhados num chão de discórdia.
Ela amava os negros. A cabeça imóvel, ela tem os olhões grandões fixos no vazio. Linda e nua, ela tem em minhas mãos a esperança de um cigarro ou da bomba do mundo um pavio.





Úmero Card'Osso



Úmero Card'Osso

 
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