Contos : 

VIAGEM NO TEMPO (Cap IV)

 
(Previsão para o ano 2060)


,,,A cedência do Marquês de Pombal exigiu muita diplomacia, mas que soubemos usar. Durante o encontro a nossa maior preocupação reside no uso do Português. Bocage, o nosso grande poeta, mostra-se despistado em relação ao problema, não lhe dando importância, mas o Marquês de vez em quando arregala os olhos e aguçando o ouvido pede para repetirmos esta e aquela palavra, mas acabando por mostrar estranheza em relação à nossa pronuncia, justificamos com o facto de sermos homens da região do Douro, todos com vastas explorações do vinho do Porto, actividade de particular agrado do Marquês. Será pois natural – sublinha Norberto – que o nosso sotaque seja portanto provinciano. Parece-nos aceite a justificação, a que Bocage corresponde com um dito jocoso, mal entendido por nós, mas logo seguido de duas quadras do seu particular agrado:

Da triste Inês , inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náides carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Todos ficamos em respeito ante este espasmo poético. O Marquês acena com a cabeça numa atitude de apreço, no que me diz respeito, pessoalmente, tenho dificuldade em conter a minha emoção defronte daquele meu antepassado, de quem naturalmente ocultei o meu sobrenome. Não me parece oportuno que ele sonhe com tal realidade, apesar de ser essa a vontade dos meus colegas. Decorre animada a cavaqueira, apesar de serem escassas embora bem-humoradas as palavras do poeta. A situação torna-se comprometedora no momento em que depois de um silêncio, o nosso Elmano Sadino na sequência de um comentário relacionado com as suas andanças pelo Oriente, arranca imprevistamente com outro verso, bem menos apropriado:

Sanhudo inexorável Despotismo,
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do Ateísmo;

Fica-se por este verso que nos deixa, a olharmo-nos de soslaio, enquanto que o Marquês se mostra agastado com o rasgo poético de tom satírico do poeta, por admitir que possa dizer-lhe respeito. Com a mão trémula pega no copo nem ele sabe bem se é com intuito de beber, pois limita-se a comentar também com voz trémula e num tom de quem está com alguma pressa: - o que neste momento me apetece dizer é que as portas do Limoeiro continuam abertas, não só para se sair, mas sobretudo para entrar ou voltar a entrar… - levantando-se alega urgência pessoal em se ausentar deixando-nos a promessa de um posterior encontro, mas possivelmente limitado em relação às pessoas, despedindo-se de nós circunspecto, mas ignorando o poeta, que não se mostrou minimamente perturbado.
Ao sair do Nicola o Marquês volta-se para trás para uma última palavra connosco, só que Norberto tinha accionado o sistema de desmaterialização logo após a despedida, pelo que, para surpresa e espanto do Marquês e também do poeta não enxergaram as nossas pessoas, facto para eles mais do que desconcertante, mesmo absurdo, já que não houve tempo para, em circunstancias normais nos termos afastado.
Na cabeça do Marquês ficou a regurgitar uma estranheza a roçar o medo, que ele não conteve e manifestou, apesar de tudo ao nosso poeta que, como ele, estava com os olhos esbugalhados. Esta circunstância inesperada e mesmo insólita fez com que o mal entendido se diluísse ao ponto de o Marquês pedir com aparente naturalidade a Bocage que o acompanhasse, até porque era já noite. À porta do palácio, quando iam para se despedir já quase como dois amigos (esquecido o incidente), ambos se apercebem de que uma luz, semelhante a uma estrela, mas mais intensa, sobrevoa numa vertigem a cidade, fenómeno que volta a acontecer instantes depois no sentido inverso.
Ambos deitam as mãos à cabeça extremamente intrigados e como é já tarde, o Marquês não tem coragem de mandar o pobre poeta para o convento sozinho, pelo que lhe oferece dormida no palácio. 0 poeta reflecte por instantes, mas acaba por se encher de coragem e tomar o caminho do convento onde está instalado, tranquilo já no que concerne a eventual despotismo por parte do Marquês. Caminha de punhos cerrados, como para esconjurar o mau presságio de tudo o que sucedera nesta noite e que culmina com uma desconcertante estrela capaz de rasgar os céus de Lisboa. Desconhecem os dois antagónicos alfacinhas o grave incidente que está a acontecer e que tem que ver com a dita misteriosa luz. É que por falha humana do nosso colega e primeiro piloto Norberto, a nave desviou-se inesperadamente da estrada do Tempo o que a colocou num total descontrole, por assim dizer numa rota de sentido contrario ao que seria normal.
Por esta altura é recebida na base espacial de Alcochete, aonde um numeroso grupo de pessoas (familiares e técnicos espaciais) aguardam ansiosamente a descida da nave e consequente fim da aventura, uma mensagem preocupante em que Du Bocage dá, em breves palavras, conta da situação, ao mesmo tempo que transmite nervosamente o texto de todos os registos feitos na viagem, para conhecimento futuro. A mensagem resume-se nestas breves e preocupantes palavras: incrivelmente não conseguimos descortinar como, acabamos de nos perder na estrada do tempo. Que fique bem ciente, não está em causa o espaço, os caminhos do espaço, mas a desconcertante estrada do tempo. A situação é preocupante. Muito difícil recuperarmos a nossa rota. Rezamos porque isso aconteça.

Segundos após o termo desta mensagem patética é avistada sobre a base espacial uma luz intensa que se aproxima, ao mesmo tempo que é renovado o contacto de Du Bocage informando com incontida euforia o facto de no último instante ter sido retomada a estrada espacial correcta.
Du Bocage acrescenta, que a correcção na rota da nave correspondeu a uma entrada imprevista e genial em plena auto-estrada do tempo, com um solavanco quase imperceptível. Acrescentou finalmente: «a entrada nesta auto-estrada correspondeu a uma vertigem em termos de deslocação no tempo, pelo que foi num ápice que transpusemos todo o século XIX e XX. Há um pormenor que nos deixou pena: tínhamos previsto um espectáculo singular para meados do século XIX, justamente uma exibição da Severa na própria casa onde nasceu, na Rua do Capelão. Claro, não foi possível, ficará para uma próxima oportunidade…»

Há uma alegria incontida no grupo de pessoas que aguardam com ansiedade o termo glorioso desta viagem Trans-Tempo, que fica para a história.

(Fim)


Antonius

 
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luciusantonius
 
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Enviado por Tópico
eduardas
Publicado: 14/06/2010 11:30  Atualizado: 14/06/2010 11:30
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 Re: VIAGEM NO TEMPO (Cap IV) p/Antonius
Pura e simplesmente deliciei-me nesta viagem, tão real quanto o poema de Bocage, tão presente quanto este tempo.

e lembrei aqui " O Cãndido".

Que mais não digo, pois iria estragar este belo texto.

bj
Eduarda