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Leituras - Outras - José Saramago - do inverosímil ao sentido

 
José Saramago, que ontem faleceu, deixou-nos uma obra ímpar, e uma obra, não só na palavra escrita, mas também na acção cívica. Este autor, do qual eu tenho o grato privilégio de ter partilhado uns escassos segundos, não só valendo-me um autógrafo, mas algumas considerações, tinha este miúdo que vos escreve dezasseis anos. Mais tarde, uns dez anos após, o reencontro e em breves instantes, mais uns escassos segundo, desta feita sem autógrafo, mas, novamente, com palavra. E este autor teve palavra, no sentido do dizer de facto, não se inibindo de expressar o que pensava. E a sua voz, mesmo antes do Nobel, era escutada.
No fundo, o que Saramago soube operar, e com grande eficácia, foi trazer o dizer literário para o polemicar em ágora. Esta acção é de sobremaneira relevante, sobretudo porque o hábito crítico, analítico é, por norma, de uma pobreza fransciscana.
Este hábito a que me refiro tem que ver com uma visão do mundo, de cada pequena coisa, de cada grande pormenor, que assim foi trazida à luz, não como algo que se rotula de bem ou mau, de esquerda ou direita, mas que há algo a debater.
Grande, sem dúvida, é a obra de Saramago, mas, também, é este legado que o autor nos deixou.
Sobre a obra, há, sobretudo, que ter em atenção o facto de ser sempre, ou quase, iniciada por um pormenor de todo impossível. Dessa impossibilidade, ergue José Saramago uma narrativa, plena de coerência. De facto, este é o lado fascinante do autor em termos estruturais. Formalmente, é o autor que diz, não escreve, isto é: a sua escrita é a aproximação do falar.
Dos seus livros, há, na minha opinião, três linhas fulcrais de acção.
Uma prende-se com um constante questionar de deus e a percepção que nós deste temos, bem como aquela que nos chega literalmente das obras que nos legam esse conceito. Sendo José Saramago um autor nado a Ocidente, numa sociedade maioritariamente cristã, mais concretamente católica, é sobre esta forma de deificação que abre o diálogo ou a polémica, no sentido helénico do termo. Nesta linha com maior incidência encontramos obras como: “Evangelho segundo Jesus Cristo”, “Caim” e “A Segunda Vida de Francisco de Assis”;
Outra tem que ver com uma interacção com a História de Portugal, onde ergueu uma obra extraordinária, “História do Cerco de Lisboa”, outra, mais conhecida, “Memorial do Convento” e a também recente “Viagem do Elefante”.
Uma outra, o extremo do Humano, quer nos Ensaios, o da Cegueira e o da Lucidez, quer, também, na visão da morte, quer no “Todos os Nomes” ou “Intermitências da Morte”.
Por incrível que possa parecer, desconheço a obra poética, excepto alguns poemas avulsos, pelo que sobre esta nada posso dizer.
Em suma: um autor que soube dizer o que é o Homem e a sua condição, dando ao género romance, não só uma história a contar, mas um conteúdo pleno de filosofia.


Xavier Zarco

 
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Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 18/06/2010 23:52  Atualizado: 18/06/2010 23:52
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 Re: Leituras - Outras - José Saramago - do inverossímel a...
José Saramgo era um escritor com uma postura sem igual.

obrigada Zarco pela partilha

beijo


Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 19/06/2010 07:39  Atualizado: 19/06/2010 07:39
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Mensagens: 11076
 Re: Leituras - Outras - José Saramago - do inverosímil ao...
Xavier,
Teceste muito bem a genialidade de José Saramago. Tudo o que se disser ficará, ainda assim, muito aquém do legado que nos deixou.
Beijo
Nanda