Poemas : 

Dissertações de verão

 



Gosto do verão, da t-shirt, do chinelinho no dedo e uma esplanada com vista para o mar.
Gosto de estar assim, sem fazer nenhum, só a dar trabalho aos olhos quando as moças passam em biquíni. O calor puxa por nós, torna-nos loucos e possessivos.
Por alguma razão deus inventou o verão, o sol abrasador, as praias cheias de gente, as falsas mulatas com as nádegas ao dependuro jogando raquetes só para mostrarem a classe dos seus tornozelos.

Gosto de ser prosaico quando alguém me vem perguntar as horas ou para que lado ficam os moinhos. E ter um isqueiro sempre à mão quando me vêm pedir lume, assim, posso pedir em troca um cigarro, já que, um bom crava, tem sempre lume. O certo é que a inflação está uma merda de todo o tamanho e não há previsões de isto dar um coice e andar para a frente. Há sacanas por todos os lados, pulhas que nos roubam a fé a torto e a direito.

Tento manter o meu negociozinho de venda de óculos de sol sem grandes voos. Cinco pares de óculos por dia dá para me manter entretido e gozar as férias com um algum forrobodó e comédia clandestina. Há meses que não sei o que é um bife no prato. Faço dietas forçadas e ainda assim tenho um pipo na barriga. Deve ser do ar que engulo. Também dependo muito do tempo, se chove ou está nublado, estou feito que não vendo nada e, de vendedor, passo a mendigo.

A vida do desenrasque é um palco enorme, e, nesse palco, o que não falta é artistas vindo de todos os lados, para mendigar, uns fazem acrobacias medonhas, outros engolem espadas, outros ganham bom dinheiro só a ficarem quietinhos, sem mexerem a ponta de um corno. Há dias tentei fazer de estátua, mas escolhi mal o dia, pois nesse dia estava com muita comichão no pacote. Ainda assim houve quem tivesse piedade e atirasse para o cestinho uns quantos cêntimos que deu para comprar dois trigos. Mas o verão tem esta magia, a arte vem para a rua, o silicone mostra a sua raça, os homens musculados deixam a inteligência em casa, a celulite a imitar o chão da lua.

Depois, os drogados, todos tísicos mas sorridentes, no parque de estacionamento a acenarem e a apontarem para um lugar vago, estendendo as mãos com olhares desolhados, como quem diz: ou dás moeda ou risco-te o carro.
E outros, que nem fumam nem bebem, caminham lentos, dentro das suas camisas estupidamente coloridas, exibindo aquele ar semi-tropical de quem gosta de dar no olho. Ou nas vistas, que é para não haver confusões.

O negócio dos óculos está parado, o tempo está como está: uma porcaria. Tem chovido muito e lógico que não se vende nadinha. Ainda por cima, os marroquinos a meterem-se.

Sinto a falta de movimento das multidões que parecem moscas na disputa de um cocó, das havaianas cá do sítio no engate de um velho rico, de me enfardar com rum para ficar mais alerta, lançar o isco a ver se pelo menos uma camone me pega, ver os pescadores a chegar do mar com notícias S. Sebastianas.

Amanhã vai haver calor, o sangue nos corpos vai subir, as mulheres vão-se mostrar até ao agrado dos homens. Irei cheirar a maresia como se fosse flores.
Vai ser uma loucura. Ver as filas de carros e saber que não é nada comigo. Ligar para a agência de viagens e dizer que não contem comigo em qualquer parte do mundo.
Porque eu vou estar somente aqui, a limar arestas ao pensamento, brocar ideias para novas ideias, sonhar que sou famoso em terra de ninguém, inflamar-me de ócio!
E o camarão e os tremoços se quiserem que venham ter ao meu prato!
Tenho um sotaque para apurar, um estilo de andar dentro de uma bermudas que vai dar que falar, uma promessa em banho-maria mas que me livra de uma mão cheia de pecados.

Ah, vou correr a praia até encontrar outro mar e, se for preciso, direi os peixes para terem cuidado com o anzol. Se tostar como uma entremeada no braseiro, assim seja, se cair numa armadilha que seja no poço fundo amor. E ter a noite como amiga, e sonhar mais alto que a luz do farol, e Sinatrar a favor do vento.

O verão está aí, as suecas com a última moda de fios dentais, a atordoar-nos com as suas brancuras, sardentas como a minha avó Quinhas, e as suas cabeças que me faz lembrar um pequeno sol.

Perder o norte para ter motivos de olhar as estrelas, deitar ao lado de uma mulher e acordar de manhã com uma gaivota, ter música no peito para enganar a fome, sentir nos pés a terra quente e saber que o sonho é o lugar onde me demoro e procrio poemas tão brancos quanto o Desejo que me pariu. Gosto do verão, sim, gosto, mas também gosto do vento, principalmente naquela parte em que levanta a saia às raparigas.
 
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flavio silver
 
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