Poemas : 

amor com amor se paga

 
amor com amor se paga


De repente tudo se ilumina. As ideias brilhantes fazem destas coisas. Se Deus quiser deixarei de andar pelas ruas a colar cartazes e terei todo o tempo do mundo para dedicar-me ao sol.
Sabem, aqui entre nós, há uma velha rica que me quer ver deitado. É como dizem na minha terra, mete-se um saco na cabeça, fecha-se os olhos e de resto é por amor à pátria. Ela está perto dos oitenta e contenta-se com umas festinhas bem leves.
Pode ser ordinário mas o resultado final será extraordinário: ficar com a fortuna dela: duas bouças, três automóveis e uma conta bancária bem abonada, recheada de zeros à direita. Ainda por cima sem parentescos. De resto, é só esperar que lhe dê um enfarte, uma trombose bem dada que a leve.

Há quem não considere mas, estar com ela uma vez por semana, a dar a dar, é já uma proeza, meritório de troféu e tudo. Claro que estou como o cangalheiro quando diz, não quero que ninguém morra, mas quero que a vida me corra. Exactamente assim. Basta ela assinar que eu pisgo-me. Até lá, tenho de fazer-lhe as vontadinhas, um mimo aqui outro mimo acolá, lavar os tachos, preparar a janta, ir ao supermercado, levá-la ao doutor, etc.

Nos entretantos a Judite ligou a dizer que queria voltar, que as saudades são muitas. Caraitas, logo agora que isto corria bem a Judite havia de aparecer do nada, cheia de projectos. Isto mal dá para uma quanto mais para duas.
Mas enfim, disse-lhe, pronto, está bem. Para não meter as duas ao barulho disse à Judite que a velha era a minha avozinha de Trás-os-Montes, por parte do meu pai. Ela ficou taralhoca, pois sempre julgou que essa tal minha avó tinha falecido de congestão. Passou.
Tinha a minha vida partida em três, cuidar da velha, da Judite e eu próprio. Mas alertei-a:

- Judite, sabes que jogo à bola às quintas-feiras? O médico aconselhou-me a ter mais actividade física, sabes como é.

Ela torceu um pouco o nariz, pois melhor do que ninguém sabe que o meu talento é mais para bilhar de bolso. Passou.

E pronto, negócio feito. Às quintas-feiras saía de casa com o saco de treino às costas numa de disfarce e ia direitinho numa velocidade de ponta para a casa da velha por umas horas. O tempo de a pôr a sorrir. Depois vinha embora com umas boas notas verdes no bolso.
Quando chovia emprestava-me o seu chevrollet e, por saber que a vida é curta, aproveitava a chance e ia exibi-lo diante dos amigos, que se ferravam todos de inveja. Até a Judite sorriu, quando lhe disse que ganhara um segundo prémio na lotaria. Bendita hora. Uma vez mais festejámos em cima da máquina de lavar. Aliás, é para isto que serve um tambor avariado na sua louca trepidação: ajudar à festa.

Durante semanas andámos de restaurante em restaurante a provar bons vinhos e a apanhar pielas. O amor finalmente estava a entranhar-se em nós com uma nódoa num pano que não se quer lavar. A felicidade nunca tem palavras a dizer. Fixe. Os meus amigos voltavam um por um. É bom ter amigos assim, que vão, mas voltam. Para bem era mesmo a velha bater a caçoleta. A espera, neste caso, tinha consequências malignas para o meu corpinho cinco estrelas. A velha estava a exigir muito.
Mas, como a bem dizer era pago ao minuto, sujeitava-me, como se fosse o salvador do mundo. A velha, além da quinta-feira, quis mais um dia para si, argumentando que a solidão lhe esfriava os ossos e os sonhos. Lá tive eu, Jorge da Conceição, licenciado em solidões, chegar-lhe calor à pele.

- Judite, terça, começo as aulas de bowling.

Nova estranheza para os ouvidos da Judite, pois melhor do que ninguém sabe que sou contra isso de andar a meter dedos em buraquinhos.
Às segundas ando no Karaté. Nos entremeios perguntava-me:

- Ó Jota Cê, e quando trazes cá a tua avozinha?
- Um destes dias, um destes dias.

A melhor forma de a fazer esquecer da existência da velha era prendá-la com roupas novas e colares tão reluzentes que faíscassem aos olhos das amigas.
Só que a cabrona da velha era danada, estava imparável, e não havia mal que lhe pegasse, nem as gotinhas de lixívia na sopa, nem as cambalhotas arriscadas. Comecei a ficar fraquinho de ossos, a beber Danacol’s a ver se a coisa melhorava, mas nada, de dia para dia ia desaparecendo como um bife no prato de um etíope.

Deixei de poder dar assistência. Vi-me grego. Isto de trabalhar sem fazer descontos dá no que dá. A assistente social lá quer saber de mim. A velha deixou de dar o respectivo, até o chevrollet foi-se. A Judite estranha tudo isto, estes repentes todos, hoje tudo, amanhã nada. Anda às voltas pela casa, a pensar no pão que vai amassar, a arrancar conclusões às cabeladas, a trocar as jóias por caganifâncias. No fundo amámo-nos como dois patriotas em terra alheia.
Outro dia, ligaram cá para casa. Ela atendeu e falou o que tinha a falar. Foi uma conversa curta. Com muitos hum hum hum da parte dela. Sem perguntar quem era, a Judite fez o obséquio de matar a curiosidade com um tiro no coração mas a salvar a barriga e o futuro:

- Imagina só. Era o meu avozinho!
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/08/2010 20:56  Atualizado: 02/08/2010 20:56
 Re: amor com amor se paga
Gosto do JC. Um tipo fixe e só o f*dem.
Está muito bom o texto. Tem tudo para arrancar sorrisos ao leitor. Qual Nuno Markl.


Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 02/08/2010 22:33  Atualizado: 02/08/2010 22:34
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: amor com amor se paga
Um conto bem humorado, bem ao teu estilo.
Às vezes as coisas não são como idealizamos, acho até que raramente são e com o Jota Cê isso não é excepção.
Gostei muito de ler, parabéns.
beijinho

Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 06/08/2010 14:49  Atualizado: 06/08/2010 14:49
Colaborador
Usuário desde: 25/05/2009
Localidade: Porto
Mensagens: 2220
 Re: amor com amor se paga
Passo cá novamente para te dizer isto:

"fecha-se os olhos e de resto é por amor à pátria" - adoro o raio desta expressão!

Beijo. Já sabes que de resto te leio e gosto de cá vir.