Contos : 

Destino

 
Destino

Os sinos repicam alegremente na pequena aldeia alentejana. O som espalha-se planície fora num bom augúrio. Dois filhos da terra voltaram após muitos anos em Lisboa, o tempo necessário para concluírem os seus cursos superiores.
Ana e Filipe, ela médica, ele engenheiro, tinham nascido na aldeia. Filhos de pais abastados, seguiram muito novos para colégios em Lisboa. Em terra estranha, tiveram-se um ao outro, primeiro numa terna amizade e mais tarde, já cada um na sua Faculdade, como namorados.
Neste dia estão os dois com 26 anos. Tinham decidido realizar o seu casamento na aldeia. Já quase não conheciam as pessoas que lá viviam, mas mantinham um laço afectivo ainda muito forte.
Toda a aldeia se juntou no adro da Igreja para assistir. As pessoas, alegres, salpicaram de arroz e pétalas de rosa as jovens cabeças dos noivos. O sol de Maio sorria num prenúncio de felicidade…
Entretanto, uma jovem de 18 anos deixava escapar algumas lágrimas mas o seu semblante triste passou despercebido no meio de tanta alegria. Juliana, assim se chamava a jovem, tinha regressado por um curto período de férias ( tinha feito acreditar à família!). Na verdade, tinha ido aos 16 anos “servir”, como se dizia na terra, para Santarém. Na casa dos “senhores” havia um garboso rapaz, galanteador… transportava, agora, no seu ventre, a semente da sua credulidade, semente essa de que o semeador não queria colher o fruto. Foi despedida.
À pressa, voltou à sua terra para pensar. Enquanto via os alegres noivos tomou uma decisão: jamais voltaria à sua terra, tão pouco a Santarém. Ninguém conheceria a sua vergonha.

Idos são já nove anos. Numa Escola Básica de uma zona residencial de Lisboa:
Catarina é uma criança adorável. Tem lindos cabelos loiros, olhos brilhantes e uns oito anos bem desenvolvidos. Frequenta o terceiro ano de escolaridade. Relaciona-se bem com todos e por todos é estimada. Na Escola sabem que, apesar de adoptada, é adorada pelos seus pais e que ela lhes retribui esse grande amor
A Coordenadora do Estabelecimento apresenta uma nova funcionária à comunidade educativa, escolhida de entre muitas pelo carinho que demonstra ter por crianças, pela sua doçura de trato. Chama-se Juliana.
Uma estranha empatia se estabelece entre Juliana e Catarina. Quando Juliana sabe que Catarina fora adoptada um mar de emoções enchem o seu peito. Que teria sido feito da sua menina que aos dois meses de idade tinha sido obrigada a entregar para adopção? Como sofrera!
Por uma manhã de chuva e frio fora visitada no seu minúsculo quarto por uma Assistente Social alertada para a miséria em que viviam. Num quarto alugado num beco de Lisboa, tinha conseguido sobreviver à custa de pequenas tarefas que ia conseguindo: engomar para fora ou limpar escritórios (se lho permitiam fazer ao fim da tarde). É que, desta forma, conseguia levar a criança consigo, embrulhada num cobertor velho que a senhoria lhe tinha dado.
Mal alimentada, trabalhando mais do que a sua saúde permitia, cedo deixou de ter leite para amamentar a criança. E as coisas complicaram-se. A fome rondou o limiar da sua porta e depressa entrou no seu cubículo.
A Assistente Social conversou longamente com a pobre rapariga, convencendo-a, enfim. Autorizaria que lhe levassem a filha para adopção. Chorou amargamente. No dia em que lha levaram julgou morrer de dor. Mas sobreviveu, pensando que, na verdade, sem emprego, sem ajuda, não conseguiriam sobreviver. Perdeu-lhe o rasto.
Agora, olhando aquela menina que sabia ser adorada pelos pais adoptivos consolava-a a ideia que também a sua menina podia estar bem. E cada vez se ligou mais a ela. Não sabia explicar, mas o seu rosto parecia-lhe familiar.
No último dia de aulas antes da interrupção da Páscoa, Juliana teve uma agradável surpresa. Catarina aproximou-se dela com um sorriso rasgado. Trazia-lhe um simpático convite: quereria ela passar o dia de Páscoa consigo e com os seus pais?
Emocionada, Juliana aceitou prontamente. Quantos Natais, quantos dias de Páscoa passou sozinha? Quantas vezes se recordou dos sinos da sua aldeiazinha no Alentejo tocando para a missa do galo? Quantas lhe apeteceu abrir a janela e a porta do seu quarto para receber a visita Pascal que ali nem existia? Que saudades dos seus pais que não voltara a ver desde os seus dezoito anos! Que saudades de uma família!
Contou com ansiedade os dias que passaram tão lentamente, tão dolorosamente vagarosos!
Foi recebida numa linda vivenda, não excessivamente luxuosa mas acolhedora, com um pequeno jardim a separá-la da rua. Era tão alegre! A empregada que a recebeu convidou-a a esperar numa sala espaçosa, simples. Avisou:
- O Sr. engenheiro e a Sr.ª Dr.ª virão já recebê-la. Vou chamar a menina que está ansiosa desde manhã, à sua espera.
O dia foi muito alegre. Ficou a saber que o casal era de uma certa aldeia. Sentiu um frio no estômago, mas calou. Era a sua aldeia, e ao casamento daqueles pais tinha ela assistido, aflita, magoada, desesperada, num misto de sentimentos indescritíveis. Mentiu acerca da sua proveniência. Era de Santarém, afirmou.
Ao fim do dia, recebeu um convite que lhe encheu o coração de felicidade. Foi em êxtase total que aceitou vir morar com eles, a troco de fazer companhia à menina quando os pais estavam a trabalhar.
No dia seguinte, trouxe os seus magros pertences para casa do jovem casal. No quarto que lhe destinaram, arrumou as suas “relíquias”. Dentro de uma caixinha que levara consigo da aldeia para Santarém, de Santarém para a aldeia, e desta para Lisboa, guardava os seus segredos: um ramo de flores secas( as primeiras que o filho dos seus patrões lhe oferecera), uma medalha de N. Sr.ª de Fátima (lembrança de sua madrinha) e um punhado de fotografias da sua infância. Olhou cada uma das suas lembranças com os olhos rasos de água, apreciou a beleza dos seus cabelos de oiro aos dois anos, o brilho dos seus olhos aos seis, a elegância dos seus escorreitos oito anos… Nos seus olhos, as lágrimas secaram. Entendeu a familiaridade dos traços de Catarina. E entendeu o Destino! Porém, já que o destino as juntara, calar-se-ia para todo o sempre.
E agradeceu a Deus, ao Fado e ao Destino, não fosse algum deles levar-lhe a mal o esquecimento!




Goretidias

 
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goretidias
 
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