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literatura

 
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Ó caralho! Ó caralho!
Quem abateu estas aves?
Quem é que sabe? quem é
que inventou a pasmaceira?
Que puta de bebedeira
é esta que em nós se vem
já desde o ventre da mãe
e que tem a nossa idade?
Ó caralho! Ó caralho!
Isto de a gente sorrir
com os dentes cariados
esta coisa de gritar
sem ter nada na goela
faz-nos abrir a janela.
Faz doer a solidão.
Faz das tripas coração.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque não vem o diabo
dizer que somos um povo
de heróicos analfabetos?
Na cama fazemos netos
porque os filhos não são nossos
são produtos do acaso
desde o sangue até aos ossos.
Ó caralho! Ó caralho!
Um homem mede-se aos palmos
se não há outra medida
e põe-se o dedo na ferida
se o dedo lá for preciso.
Não temos que ter juízo
o que é urgente é ser louco
quer se seja muito ou pouco.
Ó caralho! Ó caralho!
Porque é que os poemas dizem
o que os poetas não querem?
Porque é que as palavras ferem
como facas aguçadas
cravadas por toda a parte?
Porque é que se diz que a arte
é para certas camadas?
Ó caralho! Ó caralho!
Estes fatos por medida
que vestimos ao domingo
tiram-nos dias de vida
fazem guardar-nos segredos
e tornam-nos tão cruéis
que para comprar anéis
vendemos os próprios dedos.
Ó caralho! Ó caralho!
Falta mudar tanta coisa.
Falta mudar isto tudo!
Ser-se cego surdo e mudo
entre gente sem cabeça
não é desgraça completa.
É como ser-se poeta
sem que a poesia aconteça.
Ó caralho! Ó caralho!
Nunca ninguém diz o nome
do silêncio que nos mata
e andamos mortos de fome
(mesmo os que trazem gravata)
com um nó junto à garganta.
O mal é que a gente canta
quando nos põem a pata.
Ó caralho! Ó caralho!
O melhor era fingir
que não é nada connosco.
O melhor era dizer
que nunca mais há remédio
para a sífilis. Para o tédio.
Para o ócio e a pobreza.
Era melhor. Com certeza.
Ó caralho! Ó caralho!
Tudo são contas antigas.
Tudo são palavras velhas.
Faz-se um telhado sem telhas
para que chova lá dentro
e afogam-se os moribundos
dentro do guarda-vestidos
entre vaias e gemidos.
Ó caralho! Ó caralho!
Há gente que não faz nada
nem sequer coçar as pernas.
Há gente que não se importa
de viver feita aos bocados
com uma alma tão morta
que os mortos berram à porta
dos vivos que estão calados.
Ó caralho! Ó caralho!
Já é tempo de aprender
quanto custa a vida inteira
a comer e a beber
e a viver dessa maneira.
Já é tempo de dizer
que a fome tem outro nome.
Que viver já é ter fome.
Ó caralho! Ó caralho!

Ó caralho!

Joaquim Pessoa


cruz mendes

 
Autor
Alexis
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Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 21/10/2010 15:50  Atualizado: 21/10/2010 15:50
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: literatura
Vê? como as diferenças existem?
Do Joaquim Pessoa, prefiro mil vezes
este poema, (entre muitos outros...)

Em Alcácer eram verdes as aves do pensamento
Eram tão leves tão leves como as lanternas do vento
Em Alcácer eram verdes os cavalos encarnados
Eram tão fortes tão negros como os punhos decepados

Em Alcácer eram verdes as armas que eu inventei
Eram tão leves tão leves tão leves que nem eu sei
Em Alcácer eram verdes os homens que não voltaram
Eram tão verdes tão verdes como os campos que deixaram

Em Alcácer eram verdes as maçãs feitas de lume
Eram tão frias tão frias como as dobras do ciúme
Em Alcácer eram verdes estas palavras que agora
são tão caladas tão cernes tão feitas desta demora

Em Alcácer eram verdes as flores da sepultura
Eram tão verdes tão verdes tão verdes como a loucura
Em Alcácer era verde meu amor o teu olhar
Era tão verde tão verde quase à beira de cegar

Em Alcácer eram verdes os lençóis onde morri
Eram tão frios tão verdes como os campos que eu não vi
Em Alcácer eram verdes as feridas do meu país
Eram tão fundas tão verdes como este mal de raiz

poema Joaquim Pessoa







Enviado por Tópico
Epifania
Publicado: 21/10/2010 16:08  Atualizado: 21/10/2010 16:09
Super Participativo
Usuário desde: 02/07/2010
Localidade:
Mensagens: 179
 Re: literatura
- Gostei da tua escolha, simplesmente fantástica...mas Alexis, tu tens poemas que eu também gosto...

- Foi difícil a a escolha, sabes? A Epi... deu-me a primazia e eu escolhi este, Alexis


Esperança em tons de azul

não escureças lago azul,
com as penas da saudade.
canta um pássaro a sul
que anuncia liberdade

e ao norte,o frio em sorte
está a força,o entendimento
tanto em vida como em morte.

não será vão o sofrimento
nem o será o vento forte.


Ler mais: http://www.luso-poemas.net/modules/ne ... ryid=148676#ixzz130fmxK1a
Under Creative Commons License: Attribution Non-Commercial No Derivatives


beijo
e
abraço


Epifania & Ainafipe


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/10/2010 16:20  Atualizado: 21/10/2010 16:20
 Re: literatura / Alexis
Pois bem , já que falamos de Joaquim Pessoa , por que não "Amor Combate" que o Carlos Mendes cantou magistralmente ?

Amor Combate

"Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.
Teus braços são a flor do aloendro.
Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.
Teus olhos são da cor do sofrimento.

Amor-país.
Quero cantar-te. Como quem diz:

O nosso amor é sangue. É seiva. E sol. E Primavera.
Amor intenso. Amor imenso. Amor instante.
O nosso amor é uma arma. E uma espera.
O nosso amor é um cavalo alucinante.

O nosso amor é um pássaro voando. Mas à toa.
Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa.
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.
O nosso amor é como a flor do aloendro.

Deixa-me soltar estas palavras amarradas
para escrever com sangue o nome que inventei.
Romper. Ganhar a voz duma assentada.
Dizer de ti as coisas que eu não sei.
Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.
Amor-verdade. Amor-cidade.
Amor-combate. Amor-abril.
Este amor de liberdade."

Joaquim Pessoa


Cumprimentos



Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/10/2010 16:27  Atualizado: 21/10/2010 16:27
 Re: literatura
Pois eu contraponho com um poema dos teus primeiros. Aqueles que me deliciavam

Aqui fica um sem comentarios que merecia ser reeditado


PASSEAR POR TI

Quero passear por ti
Sem ousar conhecer-te.
Pode ser horrível conhecer-se
Demasiado bem alguém.
Deveríamos pensar sempre
Que estamos enganados quanto aos outros.
Nunca te esqueças de me lembrar
Que o fascínio permanece em ti,
Que há recantos intangíveis,
Mistérios insondáveis
Que eu desejo descobrir,
Para sempre...


Ler mais: http://www.luso-poemas.net/modules/ne ... oryid=60400#ixzz130kc3iZv

Um fascínio este poema

Beijo azul