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A Baixa da triste Lisboa

 
A capital do desassossego, da envolvência das multidões, das idas às compras em grupos de amizade e de família na sua Baixa, em tempos carismática nesse sentido, já não é o que era. Sofreu o desenlace, nesta actualidade de sofrimento e desamparo social. Hoje, quando chega a hora das portas das lojas fecharem, pelo seu normal horário de funcionamento, desertificam-se as ruas que são suas, pela inoperância e desgaste do ultraje e receio de ali permanecer. Desalento pela contraposição de memórias que não são tão longínquas como isso.
A gente que sempre lhe deu vida trinta anos atrás, mesmo depois das horas laborais, já não permanece nos seus espaços, outrora gratificantes e valorizados pelo convívio apelativo às conversas, interacção e ao comércio em geral. Agora, à tardinha, desguarnece-se, definitivamente.
Quando a madrugada lhe chega ao seio, mesmo de forma sorrateira, tudo se deferência, na sua movimentação, comparando-se a esses referenciados tempos, de há três décadas atrás. Houve-se um singelo tossir, que apesar de tudo se torna relevante, aqui e ali em lugares recônditos onde moram a pobreza e a solidão. São recantos esquecidos pelas suas noites.
Às vezes, e cada vez mais, sente-se o estalar de um vidro de uma montra omitida que descamba num quieto chão, frio e insensível, sem meios para alterar o continuar amorfo da inoperância e do deixar andar, em mais um furto que acontece. E, assim, aquele enorme espaço que foi mítico, falo do que sei, pois pisei aquele solo todos os dias, em vários anos, aquecendo-o, como tantos outros, do calor que hoje lhe falta, se isola, depressa, de todos os conceitos.
Nada é como foi, isso define uma continuidade, obviamente, mas aqui nada progrediu, antes pelo contrário. Aquele ambiente era o escolhido para muitas famílias e amigos desenvolverem o seu passeio nocturno, após o jantar, para irem ver as montras dos estabelecimentos. Neste tempo, tudo isso deixou de existir, pouco a pouco, sofridamente, dissipando-se, neste jazer, um habitual e salutar hábito, em todos os contextos.
Restam as luzes que a iluminam, no silêncio de todas as vozes e na fuga de todos os murmúrios, num nada que pouco é, efectivamente. As referências lá continuam, como é evidente, mas despidas de todo o movimento e da saudável loucura que a vitalizava diariamente.
Sobeja o castelo, o de S. Jorge, que um dia Martim Moniz ajudou a conquistar aos mouros e ao seu rei Afonso, na libertação de Lisboa. Lá está ele numa das colinas da capital portuguesa, hoje transfigurada no tempo, observando tudo em seu redor, como se estivesse aguardando a chegada do inimigo. Só que agora o inimigo é outro, chama-se crise, dizem.
Que chegue o amanhecer e o projecto de um novo dia laboral, apesar de tudo.

António MR Martins


António MR Martins
Tem 12 livros editados. O último título "Juízos na noite", colecção Entre Versos, coordenada por Maria Antonieta Oliveira, In-Finita, 2019.
Membro do GPA-Grupo Poético de Aveiro
Sócio n.º 1227 da APE - Associação Portugues...

 
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António MR Martins
 
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