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Aquele dia

 
Naquele dia, ergueram-se árvores e arbustos e o verde. E essas árvores e esses arbustos e esse verde foram tudo o que de árvore e arbusto e verde se pode ser. Foram ar carente de pulmões, foram terra com sede de raízes com sede de água e fogueira sem fogo; e foram os pulmões e as raízes e a lágrima e a chama, que nada respiram, brotam, regam ou ardem. E que respiraram e brotaram, e que regaram e arderam: naquele dia.

Naquele dia, nasceu o vento e as pétalas e as asas. Vento que soprou ao sabor do norte, que desnorteou as asas; vento que espalhou as pétalas, que existiam sem flores. Naquele dia, vernou o norte e nasceram as flores. E as árvores e os arbustos e o verde orientaram-se apaixonadamente conforme as pétalas e o vento e as flores, que eram já mais do que verde: um miscigenado de cor, que também nasceu naquele dia.

Naquele dia, formou-se carne. E as asas puderam voar porque já tinham onde se agarrar: nasceram borboletas e pássaros: ostentavam cor. E os Grilos e as joaninhas. E com os grilos e as borboletas, os pássaros e as joaninhas, nasceu o som e o aroma. E o sol, imponente, que já existia antes daquele dia, pôde raiar com um vigor discreto, um vigor com cheiro, um vigor com gritos imperceptíveis que bradavam aos céus azuis.

Naquele dia, nasceram os montes e as montanhas e a água pôde cair: esculpiu rios, riachos e cataratas e deu de beber aos grilos e às borboletas, aos pássaros e às joaninhas.

Estenderam-se, naquele dia, campos de trigo perpétuos, que baloiçavam deleitosamente ao sabor, som e imagem do vento, que soprava ao sabor do norte. Sentiam-se os assobios celestiais: os sussurros aprazíveis das sucessões pacatas que se entrelaçavam com o bem-querer harmonioso daqueles campos de trigo.

Naquele dia, criaram-se os arrepios e os suspiros e os calafrios. E o devaneio eterno foi Divindade. Os grãos de areia deambulantes fundiram-se num maciço sublime de paixão. E da envolvência voluptuosa ergueram-se pontes, casas; formaram-se estradas e avenidas. E os arrepios e os suspiros e os calafrios puderam vaguear pelas ruas, estradas, vielas, avenidas; ultrapassaram pontes e embateram em edifícios.

E o que não existe aconteceu também naquele dia: meninos infinitos, órfãos de pai e mãe infinitos, brincaram até mais tarde numa calçada infinita, porque o jantar não ficou pronto a horas, porque a mãe, naquele dia, não fez o jantar para o pai que chega a casa cansado do trabalho, porque o pai não chegou a casa cansado do trabalho, porque não chegou a casa.

A nostalgia morreu naquele dia em que o tempo parou.


Rui Gomes

 
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