Poemas : 

O CHEIRO

 
Não adiantou tapar o nariz, botar lenço, desviar a cara, o cheiro entrou pelos poros, atravessou a pele e foi direto para onde não queria que fosse. Durante o tempo em que permaneceu ali ergueu tsunamis, ativou vulcões, desencadeou tempestades, destruiu miríades de anjos, confundiu o céu e o inferno, fez nascer planta em pedra, entonteceu-o. O cheiro destruiu o tempo, fundiu a existência, mergulhou no fundo do rio, arrancou-lhe as vísceras expondo-as à luz do sol. Trouxe também a certeza de que ainda havia prazer naquele corpo retorcido pela vida. A primeira vez que sentiu pensou em coisas que não queria pensar, não podia pensar, não devia pensar. Mas ali estava tudo a sua frente, cristalino como o rio que costumava mergulhar quando criança. O odor presente perfurou a bolsa do tempo e eles vieram paulatinamente, um a um, perfumes que até então julgara destruídos. Primeiro o cheiro do campo, de terra molhada, de esterco de boi. Como um pincel mágico o perfume desenhou as lembranças na tela dos pensamentos. Ivete. Os dedos rachados chegaram ao nariz com a mesma suavidade empregada na descida pelo monte de Vênus e injetaram um cheiro de amêndoas quase maduras. Num gesto abrupto, baixou a mão olhando para os lados. Já pensou se a mulher o visse cheirando os dedos naquela idade? Sorri. Ninguém. A mão volta ao nariz levando o cheiro de Ivete. Olha para o teto na esperança do socorro divino. Tem a impressão que ele está lá, se acabando de rir. Ivete. Inverte. Troca de mão. Novo cheiro. Ivete desaparece na bruma do tempo. Em seu lugar surgem os burros. Uma manada inteira conduzida pelo olor para dentro do seu cérebro. Coisa de Deus. Coisa do Diabo. O olfato conspira. Vê-se menino na beira do rio. João dos Burros esfrega o lombo dos asnos. Não adianta. A inhaca não sai. Joana surge no meio da manada. O cheiro dela faz a inhaca desaparecer. João dos Burros tira a manada da água e mergulha no cheiro de Joana. A mão do velho desce para a virilha. O menino urina nas calças. Joana monta em João e a manada os segue no caminho para casa.
Não contava com aquilo.
A cor desbotada cobria a sua existência como um escudo, protegendo-o das investidas da carne. As folhas amareladas do livro santo sepultavam os germes da perdição com a força de uma prensa gigantesca. Aos oitenta anos a morte não parece tão feia. Pôde até pensar nela como uma mulher chorando de raiva do marido por haver sido enganada. Sabe que não será alcançado por seus braços mortais. Num piscar de olhos estará do outro lado, no mundo além, eternamente com Ele. Mas de repente o cheiro balançou o coreto. Um cheiro negro, viscoso, um polvo com infinitos tentáculos capaz de sugar a morte, o medo, a fome, a tristeza, o tédio, e expor um universo paralelo colorido, esfuziante.
Soubesse não a teria contratado. Sei lavar, cozinhar, passar e preciso trabalhar, disse a moça. Pensou em negar, mas poderiam chamá-lo de racista. Ela era negra. Olhou para a esposa doente. Tinha que ter alguém para fazer o serviço de casa. A mulher já não podia nem andar direito com os calos secos, a diabete avançando, o peso dos anos. Ainda tentou ele mesmo assumir a casa, mas também os pesos dos anos lhe pesaram. Acertado os dias, o horário, o salário, Benedita começou a trabalhar. Aos poucos foi tomando conta de tudo. Começando pela comida. Que tempero, que cheiro bom a casa tinha quando ela estava na cozinha. A presença de Benedita trouxe alegria para a casa. Ela estava sempre rindo, atenta a tudo, se antecipava aos interesses dos donos. Com seis meses Benedita estava integrada a família como uma parenta específica. A negra nos seus vinte anos exalava saúde como uma potranca selvagem. Um dia o velho chegou mais perto dela para segurar uma fruta. Benedita tomara banho apenas com sabão comum. Do seu corpo exalou um cheiro de fêmea. O velho prendeu a respiração. A vista escureceu, sentiu um formigamento nos pés. Benedita seguiu para a cozinha e ele ficou ali com as frutas na mão sem saber que fazer. Seu Brivaldo me dê as bananas! Caminhou como um autômato entregou-lhe as frutas e correu para o quarto. A névoa embotada e amarelada começou a desaparecer. Dos pés subiu uma quentura, as veias do corpo ficaram mais azuis. Será possível? De repente tudo estava ali na sua frente.
Tomou banho, trocou a cueca, vestiu o pijama e sentou na beira da cama. Pela janela olhou o corpo carcomido da mulher e tentou imaginar o cheiro. Agora percebera que havia sido conquistado pelo cheiro dela há muitos anos atrás. Um cheiro de sapoti misturado com a inhaca dos burros de João dos Burros. Lembrou bem daquela tarde em que ela e a irmã esperavam-no para ir ao cinema Pathé, em Afogados. Bem no meio do filme ela deitou a cabeça nos seus ombros e o perfume dos seus cabelos tomou-lhe o corpo. Outros odores vieram, mesclaram-se, fixaram marcos. Até que um cheiro divino o assaltou ao ser envolvido pela fumaça branca do turíbulo santo da igreja de são Sebastião. As palavras do padre André soaram como um poderoso gancho recolhendo do vale de sua vida as coisas fedorentas com as quais havia se envolvido. Quando recebeu a hóstia santa depois de tanto tempo sentiu o corpo limpo, a alma leve, o espírito livre. Agora tenho o cheiro de Cristo.
Mas o cheiro do diabo permanecia ali, vindo da cozinha.
Depois do almoço a filha levou a mulher para o médico. Pela primeira vez o velho ficou com medo de ficar sozinho em casa, com Benedita fazendo a faxina. Estremeceu ao ouvir a voz da criada:
— Hora do remédio Seu Brivaldo! Abra a porta!
Ora! Mas que besteira! Resmungou para si. Não há de ser nada. Ergueu a cabeça se mirando do espelho do toucador. Atrás de si ele viu todas as imagens geradas pelo perfume de Benedita. Novamente sentiu o formigamento nos pés. Não! Não podia aparecer na presença da moça com aquele volume na virilha. Também não podia deixar de tomar o remédio na hora certa. Teve a certeza que se abrisse aquela porta Benedita seria sufocada pelas imagens que inundavam o quarto. O crucifixo! Aleluia! Num gesto rápido arrancou o objeto da parede, e segurando-o a frente da braguilha abriu a porta. Antes de engolir os comprimidos que Benedita lhe dera percebeu um cheiro mais forte se sobrepondo ao perfume de inhaca e asno que vinha do corpo da negra. Um cheiro de cravo.
Caiu morto.

 
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ValdeciFerraz
 
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Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 04/08/2011 22:43  Atualizado: 04/08/2011 22:43
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 Re: O CHEIRO
Boa noite Valdecir, seus versos narram um personagem complexo. parabens pelo seu instigante poema, MJ.