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21ª foto - Lídia

 
Tags:  Fotos - 26/02/2008  
 
- A distracção deu-me felicidade por momentos... por momentos não pensei em nenhum futuro.
Lídia passava os dias a pensar no seu dia seguinte. Sofria de algo que, os médicos, diziam não saber bem o que é mas que lhe estava a consumir o corpo de forma muito rápida e não lhe deixava mexer um músculo, que fosse, abaixo dos ombros. Não iria, melhor, não queria estar muito mais tempo entre os mortais e, no entanto, desconfiava que não existiam imortais. A outra vida, que durante todo este tempo lhe havia sido prometida pelo padre da aldeia, cada vez mais se parecia com as histórias que se contam às crianças para as enganar enquanto se lhes enfia uma colher de sopa pela goela dentro.
Quarenta e três anos feitos em Março, a abrir a primavera. Ainda no ano passado, por esta altura não tinha nada, mexia-se a torto e a direito nos afazeres da quinta... e daí... se calhar até tinha, de certeza que tinha mas não sabia.
Também nunca foi muito de ir ao médico. Lá entendia que era tempo perdido e sempre achou que era como visitar uma loja onde se vendem doenças, uma loja em que todos eram charlatães faziam empréstimos de saúde. Era ideia que lhe vinha da avó, velha de uma rijeza a toda a prova.
- Ah que coisa! Porquê eu? Porquê assim? - ... eram sempre os mesmos "porquês". Depois de saber, depois de começar a saber que estava quase no fim, era assim todos os dias - Só quero que isto acabe de uma vez! Se é para morrer, que seja já!
E logo...
- Ai credo! Que o diabo seja cego, surdo e mudo! - num exorcismo de trazer por casa, alguém exclamava enquanto procurava por algo feito de madeira para lhe bater um terno de vezes com os nós dos dedos.
- O diabo? Que se lixe o diabo! Que morra eu aqui e agora! Que se lixe o diabo! Se isto é obra de deus, que venha o diabo! – o tom ríspido e quase mal educado, gerou... silêncio! Um parágrafo fechado e enorme e um silêncio desconfortável. Toda a gente, naquele quarto, olhou para o chão e, só Lídia olhou para toda a gente com os olhos líquidos de medo e raiva sublinhados pelo queixo que tremia incontrolável.
Era difícil entender como é que as boas intenções podiam ser tão desumanas, como é que os sentimentos de misericórdia, desejos de vida longa e piedade podiam ser tão agressivos e fazer tanto mal. Lídia só queria que todos compreendessem que estar viva era um tormento maior que qualquer morte... devia ser esta, talvez, a única vez que desejou algo para si e não lho queriam dar.
Que sentimento de impotência! A incapacidade que a doença lhe oferecia, tirava-lhe qualquer hipótese de autonomia. Quarenta e três anos e punham-lhe fraldas, limpavam-lhe o rabo e mexiam-lhe em todo o lado sem que ela pudesse fazer nada... em quarenta e três anos tivera muitas vezes medo mas, só medo. Agora sentia um misto corrosivo de humilhação e terror. O pior de tudo é que o cérebro funcionava. Ela ouvia, via, cheirava, pensava e até sentia. As pessoas não percebiam que isso era a forma mais insana de tortura que se podia imaginar.
No aparelho de televisão que lhe haviam posto aos pés da cama para a distrair, era hora de noticiário. As notícias do costume. Um atentado no Iraque causou trinta mortos. Uma criança foi encontrada morta depois de violentada pelo tio. Num banco conhecido foi feito um desfalque e três gestores fugiram para as Maldivas. Na interpelação mensal ao governo houve troca de ofensas entre o líder da oposição e o primeiro ministro. A eutanásia foi discutida e considerada imoral e ilegal pela igreja e por vários sectores da vida pública nacional.
Lídia olhou para o relógio que se estava na parede. Fixou-o. O ponteiro dos segundos girava candenciado... tictictictictictictic. O ponteiro dos minutos respondia-lhe a espaços. O outro demorava sempre mais.
Lacrimejou em silêncio e pensou o mais alto que conseguiu... “matem-me”.

Valdevinoxis


A boa convivência não é uma questão de tolerância.


 
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Valdevinoxis
 
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Enviado por Tópico
Transversal
Publicado: 27/10/2011 04:16  Atualizado: 27/10/2011 04:19
Membro de honra
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 Re: 21ª foto - Lídia
Tenho lido os seus textos "Foto", porque no meu amadorismo fotográfico, mantenho o ditado "uma imagem vale mais que mil palavras". Mas a descrição do que uma foto revela a quem a vê, é algo muito difícil. Este texto tem um pouco de tudo, descrição, olhar,e uma estória (ou história por não saber se é real se é ficção)bem interessante, cujo tema é a eutanásia. As questões colocadas pelo seu texto, fazem parte de um debate a que a sociedade foge, talvez por motivos de crença, ou pelo juramento de Hipócrates, ou porque o Estado reconhece o principio da dignidade humana (mesmo fazendo vistas grossas à miséria, ou defendendo a pena de morte), ou... e nestas questões de quem é contra e a favor "difícil entender como é que as boas intenções podiam ser tão desumanas" para quem já está numa fase terminal e quase que implora "matem-me", onde está implícita a superior liberdade do individuo em poder decidir sobre a sua própria vida.

O seu texto está bem conseguido, prendendo o leitor que se irá questionar sobre a Lídia no seu "sentimento de impotência". Acho também que existam uns poucos desabafos "a única vez que desejou algo para si e não lho queriam dar." que podem orientar a opinião do leitor.

Gostei da sua escrita.

Abraço-te

(e não me parece, que o seu texto, tenha atingido as mil palavras...)

Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 27/10/2011 04:38  Atualizado: 27/10/2011 04:38
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 Re: 21ª foto - Lídia
é de difícil compreensão dizer sim quando vivemos regidos por instituições hipócritas, o teu texto sublinha a importância da vida quando esta se apresenta digna da própria vontade de viver...e depara-mo-nos com a hipocrisia governamental que está a matar a saúde um pouco todos os dias.

parabéns

beijo

Enviado por Tópico
varenka
Publicado: 27/10/2011 20:47  Atualizado: 27/10/2011 20:47
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 Re: 21ª foto - Lídia
Esse teu texto veiu para errebentar.Me pareceu real,na sociedade em que vivemos,existe os governates que são os donos do mundo,a saúde que tem,onde os medicos são uma classe organizada e fazem o que querem,podem tudo,e o povo que não sabem a força que possuem.Um texto que aplado!Mil beijos.Varenka