Poemas : 

[Paisagens Perdidas... e Eu]

 
Eu.
Nada.
Ninguém.
Nunca.


[O arraial é; o arraial está à margem do tempo]

O arraial, um deserto de pássaros cansados do voo.
Praia de rio, vazia, erma de doer o peito.
Rua do arraial, batida pelo vento.
O inverno do arraial é um assovio de lâmina afiada; corta...
Cemitério do arraial cravado de silêncios antigos.
Ninho caído depois da chuva, filhotes mortos.
Desespero de mãe pobre, o filho perdido para o azar.
Rua do arraial, velhos sem onde, fumam, fumam devagar...
Rua do arraial, venda pobre, cachaça morna.
Córrego do arraial, esperanças todas idas nas cheias de janeiro.
Igreja do arraial, vontade de ir para o céu que não existe.
Ninho caído... casa desfeita, filhas na zona.
Rua do arraial, e na tarde, burros cansados do eito.
Praia de rio, putas morenas me querem, mas zombam de mim.
Praia de rio, canoa que escapa de mim, e eu fico.
Rua do arraial, cachorro magro, e nas janelas, uns eus já desistidos.
Cemitério do arraial, vidas enterradas no nada, orgulhos vencidos.
Desespero de mãe pobre, filho sem futuro, filho-ninguém.
Na venda miserável do arraial, um certo filho bêbado, entregue...

E na paisagem do arraial,
de novo,

eu,
nada,
ninguém,
nunca.

Eu, para sempre calado,
por que
falar é inútil,
pensar é nada,
agir é nada,
historicamente, nada,
nada veio de quem pensa...
Mentira: tudo vem de quem pensa
e age, age sem esperança.
Mas age sem voltar ao arraial
onde estou agora, a pensar...

E de novo,
eu,
nada,
ninguém,
nunca.

Por que, afinal,
contradição é o meu nome,
para sempre,
ou só até amanhã,
pois sempre amanhece,
sempre...

Wittgenstein estava louco
ao semear dúvida em algo
tão certeiro: sim, amanhece...
Mas eu posso duvidar,
pois eu sou um físico,
e sou:

eu,
nada,
ninguém,
nunca.

E antes mim, nada;
depois de mim, nada.

Eu sou um perdido
na praia erma do rio,
e o vento leva o meu olhar
no crespo das águas turvas.
_____________
[Desterro, 17 de novembro de 2011]

 
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crstopa
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Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 26/11/2011 13:55  Atualizado: 26/11/2011 13:55
Colaborador
Usuário desde: 23/06/2011
Localidade: Taubaté SP
Mensagens: 10200
 Re: [Paisagens Perdidas... e Eu]
Bom dia Caro poeta, seus versos narram uma cena em que os labirintos da vida se fazem presente em sua totalidade, parabens pelo seu instigante poema, ,MJ.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/11/2011 17:41  Atualizado: 26/11/2011 17:41
 Re: [Paisagens Perdidas... e Eu]
*Uma escrita forte e contundente, a 'crueza' da paisagem ardeu no meu olhar.
Esses versos...levo comigo:
'Eu sou um perdido
na praia erma do rio,
e o vento leva o meu olhar
no crespo das águas turvas.'


Carinho e admiração renovados
Karinna*

Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 27/11/2011 11:30  Atualizado: 27/11/2011 11:30
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: [Paisagens Perdidas... e Eu]
E,
de novo,
(nunca apesar de),
eu,
por tudo,
de entre todos os poetas,
sempre...


admirando-TE.

Um abraço, Carlos.

Enviado por Tópico
MomentosDeAmor
Publicado: 28/11/2011 11:16  Atualizado: 28/11/2011 11:16
Participativo
Usuário desde: 15/09/2011
Localidade: Mato Grosso Do Sul
Mensagens: 39
 Re: [Paisagens Perdidas... e Eu]
Eu.........ela
Nada.......tudo
Ninguém....nós
Nunca......sempre

Prefiro assim Carlos, rs...poema este que leva para mais longe ainda qualquer possibilidade de esperança, e, por mais que decidimos seguir a estrada, as lembranças irão juntas na mala....delicia ler-te, um carinho no seu coração de menino.


Cy