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Textos de Hermenêutica e Escatologia Literária para a Juventude (3)

 



Um problema que todos os jovens sentem, muitas vezes mal entendido, é o de como resolver o problema biográfico. Isto é: se, ao pegar no papel, devem falar sobre a sua própria vida, se a devem ficcionar, se devem inventar heterónimos e falar de pessoas com outras vidas e experiências.
Alguns homens experientes, levaram o problema a um segundo grau, dizendo que tanto faz, porque quem tenta ser justo e autêntico falando sobre si próprio acabava sempre por se ficcionar (basta perguntar ao vizinho o que pensa de nós, que não coincidirá, certamente, sobre a ideia que fazemos da nossa pessoa) e que, por outro lado, por mais que inventemos ficções e outras artimanhas, estamos a todo tempo falando do que somos, quem sabe, de forma ainda mais autêntica. Há ainda homens mais experientes do que estes, que levaram esta discussão a terceiro, quarto e quinto grau – mas deixemos todos eles em paz, e sejamos práticos e simples.
Escrever sobre si próprio, tentando ser justo e autêntico, é um belo exercício, mas devo fazer alguns reparos. Em primeiro lugar, em Literatura é preciso que o resultado disso seja interessante (certamente que para nós próprios é, talvez para os nossos curiosos amigos) mas para o público. E isso exige que a nossa vida tenha em termos de experiência uma riqueza extraordinária. Quando o judeu italiano Primo Levi, intelectual de peso no pós-guerra e da esquerda política, saiu do campo de concentração nazi, escreveu o seu monumento literário «Se isto é um homem»; a sua experiência era tão rica e socialmente necessária, que o seu tom objectivo no relato, sem adornos ou piedades e sentimentalidades, foi uma atitude de respeito à própria experiência e sua riqueza. E daqui nasce o problema consequente: quando a experiência pessoal é em si muito rica, o estilo deve abster-se o mais possível e dar-lhe espaço. Ora, um jovem tem ainda pouca experiência de vida, não se pode comparar a Napoleão que teve os destinos da Europa na sua secretária e, por isso, se quer escrever sobre si próprio, tem como único recurso a sua agudeza mental, que terá de fazer tudo. Mas bons resultados com isso, a meu ver, poucos além de Dostoievski foram capazes, que se escrevesse sobre uma coisa tão trivial como a sua ida ao mercado para comprar pão, era capaz de tornar tudo tão angustiante, fundamental, existencial, profundo, que saímos dali esgotados depois de ler.
Criar um heterónimo é também uma boa coisa, mas o jovem terá, com a sua ainda curta experiência de vida, bastante dificuldade em aguentá-lo de forma credível em termos literários, pois conhecer bem os homens ao ponto de inventar um demora o seu tempo e a sua maturidade.
Não digo, pois, que estes dois exercícios – falar de forma pura de si próprio ou de alguém completamente inventado – seja mau. Pelo contrário, o jovem que faça todas as experiências. Mas é mais aconselhável, se a ideia é ter resultados visíveis e mais eficazes, efectuar aquilo a que eu chamo de «Distorções».
Uma distorção é quando se tomam aspectos da nossa experiência e se Distorcem (eliminando, cortando, substituindo, acrescentando, esticando ou reduzindo, etc) com aspectos ficcionais. Assim, nem há um exercício de suposta autenticidade nem um heterónimo ou uma segunda pessoa autónoma, mas apenas uma espécie de espelho polimorfo que dá outra forma às imagens da nossa realidade.
Uma distorção que considero de baixa intensidade, é quando ela é tão evidente e inseguramente exposta que o próprio leitor, sem aviso prévio, sabe que ela está ali, existe quase como provocação. Se eu disser que amei uma mulher de três seios, em Calcutá, antes de ser presidente dos Estados Unidos da América, qualquer pessoa saberá, por conhecimento da anatomia humana e pelos serviços de informação, que nada disto é real e que estou a distorcer o mundo.
Uma distorção de intensidade média é quando, tomando factos da realidade e experiência próprias, ficcionamos – na própria realidade – situações, acontecimentos, desenlaces, que isso tudo, por vezes, afecta até o nosso próprio mundo. Dando um exemplo. Pedro ama Carla. Combinam um café para o dia seguinte. Pedro passa toda a noite ficcionando diálogos, situações, comprou um anel de noivado e imagina frases para acompanhar a entrega do amoroso objecto. Quando chegam ao café, antes que Pedro diga seja o que for, Carla exclama, alegre: «estou noiva do Rodrigo!» Pedro aguenta-se mal, olha a janela e aperta o anel escondido no bolso, trémulo. Pois bem. Quando Pedro chega a casa, escreve um longo poema em que, em vez de contar o fatal desfecho da história, rima as suas imaginações da noite anterior, onde Carla aceitava o anel, partiam felizes os dois para uma nova vida a dois. Isto é uma distorção de média intensidade, pois a ficção participou da própria realidade (a noite fatídica), teve nela consequências, existiu como duplo contínuo daquele pequeno mundo. Aquilo que não aconteceu, mas podia ter acontecido, cabe nesta secção.
A distorção forte é simples de explicar – pouco sobra da experiência real, a ficção é de índole apenas literária e não segmentada com o espaço e o tempo. Por exemplo. Susana vai todos os dias ao mesmo bar, esperando que Leopoldo, o empregado, repare nela. Susana, que escreve poemas, abre num dia o livro, na esplanada, e faz versos onde Leopoldo se chama Adónis, que o bar se torna Éden ou o Jardim da Babilónia, ambos falam a língua primitiva indo-europeia e o tempo dos relógios não existe, e mais distorções análogas. Aqui a distorção é forte e usa sinais simbólicos, mas pode ser mais credível e colocar Leopoldo como sendo Luis, gestor bancário, indo de férias para o Egipto, tanto faz.
O exercício da distorção, que deve ser acompanhado, penso eu (embora alguns discordem) da assinatura com pseudónimo, é, estou em crer, o mais adaptável a um jovem pretendente aos versos. Compensará com a imaginação fresca a sua experiência ainda não muito rica. Isto, é claro, se quiser fazer como tema o próprio Eu da poesia – pode sentir uma necessidade mais adequada em falar de paisagens, de política, de coisas onde o Eu está mais apagado.

Como esta pequena questão já vai muito longa, fecho apenas dizendo que é natural que os jovens de índole tímida, reservada e fechada sejam mais dados a distorções de forte intensidade e que aqueles que são mais abertos, extrovertidos e com gosto na exibição da sua pessoa sejam mais parcos na sua utilização.

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joão_sete_dentes
 
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