Crónicas : 

Comendo o Defunto

 
Os artifícios que usamos para mantermo-nos aqui nessa massa cinzenta tornam-se deploráveis. Nos julgamos uma civilização evoluída; nos vangloriamos das conquistas espaciais, das altas tecnologias que desenvolvemos; nos sentimos os reis do universo, os soberanos e, de certa forma até somos, mas os preços de tal status por vezes e quase sempre, são altos demais. Matamos, literalmente matamos para viver.
Pois é, a morte mantém a vida, a extinção de inúmeros e inúmeros seres vivos hoje, nesse dia fúnebre (todos são), o assassinato de seres que não pediram para constituírem-se enquanto vivos, foi o que manteve a nossa sobrevivência, vendo sendo assim desde a criação dessa massa cinzenta, chamada Terra e, será sempre assim, mataremos para viver. Exemplos simples podem demonstrar quão grande verdade é essa afirmação: analisando as refeições rotineiras daqueles que conseguem manter em seus lares, de maneira contínua, o hábito/necessidade de alimentar-se, conclui-se tranquilamente a necessidade de matar para a manutenção da vida; leite, pão, queijo, presunto, manteiga, café... Arroz, feijão, carne, legumes, sucos... O leitinho da manhã foi retirado das tetas de vacas das quais os ubres enchem-se de maneira veemente, o bezerro, herdeiro natural desse leite não degusta do seu alimento primordial, o líquido que parece branco encontra-se na tua mesa, os inúmeros "triguinhos" que choraram lágrimas secas ao terem suas sementes brutalmente arrancadas e, agora comem-se o pão vindouro das lágrimas do trigo; o queijo e a manteiga são derivados do leite que deveria está nas papilas gustativas do bezerro; o presunto de um porco que a muito virou presunto, um porquinho que certamente nunca fizera mal a alguém, entretanto foi abatido como presa fácil, afinal, precisamos de maneira incontrolável desse presuntinho de todos os dias; o café segue o mesmo pensamento do trigo, o cafezal chora em coro quando seus filhos são arrancados e depois postos a secar com o intuito de saciar a necessidade humana do bom e velho cafezinho de todas as horas, assim como o arroz, o feijão, os legumes, as fruteiras que choram em coro a perda de seus filhos; o que dizer do belo nelore que a pouco habitava livremente os pastos verdes da bela fazenda, o que dizer de todas as suas 25 arrobas que arrombadas foram para que a carne estivesse em vossas mesas, pois é, toda essa nossa necessidade de alimentação, depende por vezes da morte de outros, é o ciclo da cadeia alimentar, é uma constante inquestionável: matar para viver.
Diante das percepções do nosso imenso tamanho e valor (quase nada), acredito que muitas das nossas birras, por assim dizer, deveriam ser apaziguadas: orgulho menor, rancor inexistente, soberba, inveja..., tais sentimentos maléficos devem ser extirpados, afinal já temos pecado demais em matar em prol do nosso bem, ou se não matamos, no mínimo comemos o defunto.

 
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Sóstenes10
 
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Enviado por Tópico
varenka
Publicado: 24/02/2012 02:48  Atualizado: 24/02/2012 02:48
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 Re: Comendo o Defunto
Tem um bom tempo um professor falou:quanto mais reproduzimos,os pobre vão nos matar para comer.Um texto matematicamente acertado.Parabéns!