Prosas Poéticas : 

Álamos percorridos ...

 
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Álamos percorridos,
da beira de todas as estradas e, obstinadas,
apenas as mãos permaneciam geladas…

Abriu portadas, fechou janelas. A luz resvalava em ângulo agudo, por dentro do seu mundo mudo. Quebrantava-se em rendas saturadas, declinava-se moribunda na tijoleira encerada.

Agachada, afagava lentamente o corpo da arca. De madeira, era agora a vida inteira.
O cheiro exótico do mogno, o desenho epigrafado, o lustro luzidio do óleo de cedro.
O quarto antigo, o alvo da cal …. e a linhaça, as papas de linhaça. Quentes! Estavam quentes as suas mãos, fervente a cabeça emoldurada em caracóis.
- Tens febre, menina, eu bem sabia …
E os untos das galinhas sobre o papel pardo, a recobro de um pedaço de lã:
- Estarás fina, amanhã. Com esta mezinha tudo passa. Pelo Santíssimo, pela Santa Graça …
Passava. A tosse, a farfalheira, o espirro fundo, o pingo desabrido e até a dor que lhe toldava o ouvido.
Retinha-se agora, num estado combalido. Sem sentido…
- Estarás fina, amanhã.
Da rua a luz bruxuleante, o eco do seu gemido, os latidos dos cães e o cheiro nauseabundo do unto da galinha.
- E comerás a canja … ficas sabendo já!!!!
Comeria. Que remédio, haveria de não comer? Galinha era dia de festa … com massinha, seria a sua brincadeira…

Sobre a arca jazia a samarra já sarnenta. E mais ao fundo, o tríptico – o Senhor, a Virgem Santa, no colo o Menino ao lado o Santo jumento … e ainda o terço espargido p’la água benta.
Tudo em constante movimento. Num recalcular, num reticular alongado e sempre lento.
Cândida a lupa com que visionava aquele tempo. Passado.
A febre, o fogo estalado no peito. O logro, o desencanto. O tríptico, a Virgem Santíssima, ao colo o Menino. Azul… azul era o seu manto. O tudo, o tanto … o tanto faz.

Abriu portadas, fechou janelas.
Era a tarde de todas as tardes. Não, também nem sentia saudades…
Tomou a chave do cadeado, tomou-se de supetão. Resvalou por dentro do verbo encadeado d’elos fracturados em frinchas de ver verdade.
Varreu-se ulcerada em bafo verborreico, ao ângulo incerto, epitáfio da ventania. Percorreu o caminho de si, por dentro de si. Sem se ouvir viajara desatenta a vida inteira. O tempo todo. Na soma algébrica de todos os tempos. De todos os engodos. Transmutara-se e fora, o fuso e a fiandeira. O linho alvo e o tinto do burel, a espiga primordial e logo, o desabrigo e o pó do trigo, na agremia da encosta, eucalipto erecto e a planura justaposta de folha de papel.

O borrão escorria-lhe a face funda.
O rímel desabara à foz do rio, da íris verde, na sede que, quimérica, que lhe alagara o peito.
O peito, o que lhe ofereça, num sublime aconchego, num suspiro indómito e derradeiro, provindo lá de dentro, do recôndito do seu mais uterino mundo, caldeirão fervente duma emoção primeira.

Lentamente, abria agora a arca envelhecida e oferecia aos últimos raios de sol, os lençóis bordados a anil por sobre o linho.
Cerzideira, cerzia-se em agulhas sem fundo, nas linhas retorcidas d’alma aberta de uma vida.
Sorria de si, numa boca descarnada de dentes. Indiferente!

Não, não sentia frio. Olhou p'la janela o rio. Passado e presente trituravam a sua mente. Não distinguia se agora o olhar lhe chovia … ou chovia efectivamente!


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Autor
Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 28/11/2007 22:52  Atualizado: 28/11/2007 22:52
 Re: Álamos percorridos ...
Belo conto Mel...de uma descrição poeticamente soberba.
Parabéns
Beijinho enorme
ConceiçãoB