Poemas : 

Sou Filho da Droga.

 
Sou filho da Droga.

Sei que é uma afirmação forte. Determinada quiçá...
Definitiva e sem muito mais para dizer, mas há uma história por detrás.

Nasci numa casa humilde, mas lá dento viviam dois hipócritas.
Trouxeram-me a este mundo, mas logo me trataram de vender...
Se não houvesse quem me comprasse... Talvez tivesse acabado num qualquer caixote do lixo, numa qualquer morgue enlatado.
A minha nova família, não me tratou muito melhor.
Com catorze anos já metia mais dinheiro em casa que o meu chamado "pai".
Traficava no infantário, vendia às educadoras.
Vendi também ao director e nesse dia senti a dor.
O cabrão deu-me trocado,
E eu cansado...
De uma noite a empacotar.
Não tive paciência para contar...
O meu pai desocupado,
Quando lho dei,
reparou que algo estava errado,
E por um cinto fui surrado.

Ainda hoje guardo a marca eterna no ombro esquerdo.
A fivela acertou-me em cheio,
Desloquei mais que a omoplata nesse dia.
A minha cabeça ganhou vida nesse momento,
E para lá de agonia
A vida passou-me à frente...
Os meus olhos pensaram mais que eu e fugi...
Não me lembro para onde
Mas foi para lá da fronteira.
Sem eira nem beira,
Sem nada no estômago.
Só com a roupa do corpo
E as cicatrizes da vida...

Vivi, ou algo parecido,
Durante 6 meses debaixo de um viaduto.
Um dia apaixonei-me por uma mulher.
Estava caída à beira-rio.
Completamente domada pela coca.
Estava em overdose, e não fosse eu,
E ela já não estava mais cá...
Antes não tivesse sido eu,
Desejo-o neste momento.

Mas retomando...
De olhos cinzentos, fiquei vidrado...
Tez pálida, cabelo loiro...
Magra como eu,
Claramente com uma história por contar.
Salvei-a e de olhos arregalados
Agradeceu-me com um beijo.

Tocou-me nos lábios,
Com os dela...
Deu-me de novo sensações
Devolveu-me alguma cor...
Mais do que fome..
Tinha era falta de amor.
Juramos o mundo e o outro
Sangue, saliva e suor.
Escárnio e mal dizer.
Sexo, sémen e a Sida...
Que ela tinha e não me contou,
Com medo de me perder...
De me espantar...
Se ainda aqui estou,
Porque havia de nisso pensar...

Os primeiros tempos não foram fáceis,
Mas foram felizes.
Um quarto de pensão que alugámos
E dois trabalhos que nos ofereceram.
Falsas intenções as deles, que fomos explorados.
Ela recomeçou a consumir,
E eu a repassar...
Ao vê-la naquele estado a se degradar.
Não a quis deixar ir sozinha...
Tentei puxá-la,
A qualquer coisa nos agarrar...
A força da coca foi mais forte
E levou-nos aos dois.
Hoje estou aqui
Sem saber bem onde estou...
Falo para uma plateia de miúdos
Que pelos corredores segredam
"Quero ser como ele"

Penso para comigo,
Soubesses tu como tudo começou...
Estou numa poltrona encostado
A cinco minutos de entrar em cena
Sou actor desta vida putrefacta,
A que chamam ser doutor.

Corrigiste-te a tempo,
Disse quem me conhece a dor...
Desconhecem eles que isto é só por fora.
Em casa quando entro...
Corro para o quarto,
Desesperado pela minha dose...
Em seguida deito-me na cama
E gozo do meu êxtase total.

Até ao sol raiar não me mexo
Nem que o mundo esteja a desabar
E depois disso como um alarve,
Esquecendo-me de que acabo a vomitar.

Visto mais um dia
Este meu belo fato.
Um nó de gravata preta bem enlaçado.
Preparo-me para a viagem,
Dizem que a última...
Serei cremado e debaixo do viaduto lançado
O verdadeiro lar
Que para sempre me vai acolher.
Uma vez ao outro lado chegado,
Do inferno fui relegado...
O céu era o limite,
E eu morri de novo antes de lá chegar...
Perdi-me naquilo a que chamam de limbo
E desde então por cá tenho estado...

Amanhã aguarda-me uma entrevista...
Uma segunda oportunidade de viver,
Acordo então sobressaltado...
A meio da noite por uma senhora de branco abraçado...
Tenho de novo catorze anos
E no hospital estou internado.

Uma velha simpática,
à porta te deixou,
disse a enfermeira de caneta na mão,
Como te chamas, perguntou
Não me lembro de quem sou....
Sabes de quem és filho continuou
Parei por dez segundos e tudo me acertou...

Sou filho da droga...
É isso que sou.

......



César Ferreira.

 
Autor
C_Ferreira_23
 
Texto
Data
Leituras
1018
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
1 pontos
1
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 08/07/2013 18:58  Atualizado: 08/07/2013 18:58
 Re: Sou Filho da Droga.
Caro poeta
Um história forte como tantas outras.
Conheço pessoas que nasceram cobertos
de mimos, em berço de ouro.
Com todos os desejos realizados e hoje
estão dominados pela cocaina.
Acredito que quando se quer, muda-se o destino.
A droga fica só na lembrança de um tropeço
da vida.
O poema apezar de forte, ficou belíssimo!
Parabéns
Abraços.