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O cerne do amor

 
Nem os seus noventa e dois anos de vida nem a sua bengala na mão direita, o impedem de se vestir como um cavalheiro com o seu fato cinza e o seu cachecol de xadrez a agasalhar o pescoço e fazer o trajecto diário de camoineta até ao pé da sua companheira de uma vida inteira, internada na ortopedia do hospital da Amadora. Ainda está para chegar o dia em que serei eu a primeira a chegar...
Assim que começa a visita, lá pela hora do meio dia e até ao final da mesma por volta das sete da tarde, ali ficam os dois a conversar e a desfiar memórias como se estivessem sentados na sua própria cozinha ou sala de estar. Conforme a hora, se for do almoço ou pela tarde fora. A empregada chega com o tabuleiro da dieta dela ao qual ele prontamente ajuda por causa do braço partido que a impede de cortar a carne ou de pegar na tigela da sopa. Depois, é a vez dele tirar do interior de um saco de plástico o seu tachinho do guisado que fez antes de vir. Ainda lhe pergunta se é servida, mas os diabetes dela não a deixam aceitar a oferta e sorriem os dois num conformismo complacente.
E assim passam os dias, juntinhos, como o seria por certo noutro lado qualquer.


*... vivo na renovação dos sentidos, junto da antiguidade das lembranças, em frente das emoções...»

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cleo
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Enviado por Tópico
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Publicado: 19/11/2013 11:32  Atualizado: 19/11/2013 11:32
 Re: O cerne do amor
*presenciei um 'amor assim dedicado', partilhado, entre meus pais...
confesso-te que não sei no momento se foi somente uma benção para mim, pois meu ideal de amor embasou-se ali. agora, meus parâmetros são quase que utópicos, porque o que guardo na memória do meu olhar/coração, é a cumplicidade dos sessenta anos de união deles. meu pai faleceu tem dois meses, minha mãe parece agora 'avulsa', tal era a sintonia dos dois na simplicidade de estarem juntos...
enfim, um texto que me emocionou, pois ainda posso crer no AMOR.
belo Cleo!
beijoka*


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/11/2013 18:54  Atualizado: 19/11/2013 18:57
 Re: O cerne do amor
quando me prendo a esses relatos, fico sempre na dúvida se é o fim, ou sempre o (re)começo do fim duma história de amor... e tu, Cleo, sempre nos surpreendendo com essas tomadas do imagético pelo olhar cotidiano. cumprimento-a
bj e um carioquíssimo abraço meu