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SAGA DE UMA INFÂNCIA NA MINHA TERRA

 
Sim, já tive tantos sonhos.
Até de um dia ficar bem velhinho
E ver meus netos, todos, velhinhos, brincando com seus netos.
E depois de tão velho, seguindo a reta da vida, a estrada do sol
Encontrar do outro lado todos os meus que passaram pra lá,
Todos apressados, parentes, amigos, alguns nem fila respeitaram.

Sim, já fui criança:
De apertar a campainha da casa vizinha e sair correndo;
Também já me senti como cachorro que caiu do caminhão de mudança:
Meio perdido, sem rumo, meio tonto, meio mais um;
Até agarrar em rabeira de caminhão e sair rolando rua afora,
Rua de Ubá (antiga) que o diga, lá pelos anos 60, era poeira pura, da boa
Poeira de primeira, tempo danado!!! Esse assunto vai continuar
E não foi a primeira poeira nem o primeiro tombo.

Sim, fui criança que de tão boba, escondia por trás de qualquer coisa
Que pudesse me esconder das pessoas e se me chamassem,
Vinha dor de barriga, dor de dente, arrepios, o coração disparava,
A testa suava, a boca secava e os olhos, ah! Os olhos, logo condenavam...

Sim, fui criança de matar aulas pra jogar bola,
Nos campinhos sem grama, terra batida, jogava bolinha de gude
Não fazia diferença, empinava papagaio
E não fez falta o campo gramado, rodava pião
O craque foi interrompido pelo DNA mesmo.
Mas a lembrança fica: dos jogos debaixo de chuva,
Dos gritos: “sai da chuva, menino de Deus”.
De barro também eram os meus sonhos, tombos maravilhosos,
Dos braços quebrados, das brigas de brincadeira,
Das sandálias nas mãos, não tinha onde deixar, cadê o vestiário?

Sim, fui criança de ir à rezadora, benzedeira,
De pedir benção “pra mode” lombriga, carrapato,
Barriga inchada, espinhela caída, cravo na testa,
Verruga no umbigo, unha encravada, sarampo e catapora.
...mais tarde, aprendi depois,
Mais tarde, aprendi a encontrar nas orações, os amores perdidos,
As paixões impossíveis, os sogros bravos...como rezei, foram muitos...

Sim, fui criança de aprender com seis anos tirar leite,
Fazer queijos, e vender na feira, tratar dos porcos e das galinhas,
Cair de burro bravo e correr de cachorro manso,
Atravessar a pinguela, morrendo de medo,
Tocar bumbo e me achar músico, nos desfiles me vestir de branco
E me sentir médico. Fantasias, lindas fantasias.

Sim, fui criança de tomar banho de córrego, acordar de madrugada
De tomar tombos da primeira bicicleta,
De furar o calo da primeira botina, de rir de mim
Do primeiro corte de cabelos “pequeno príncipe”,
De sentir dor nos joelhos na primeira missa,
De correr de foguetes, de acreditar em bruxas,

Sim, fui criança e qualquer caneta
Qualquer espaço,
Sem caderno e sem régua
Sempre fui muito feliz,
Em tudo, sempre foi muito alegre,
Entusiasmado com o ver, com o falar
Com ver colorido, sentir frio, calor
De correr na chuva de rolar morro abaixo,
De acreditar nas promessas
Essa era a maneira de amar e valeu à pena,
Tudo valeu, ainda guardo o cheiro dos meus amigos,
Os conselhos e a voz, de cada um, tudo bem gravado

Sim, fui criança de correr de banho, ter medo de água fria,
De chorar quando perdia os primeiros dentes,
De emburrar porque o vizinho se mudou
Levando todas as filhas, todas, poderia ter deixado uma,
Apenas uma e não deixou.

Sim, fui criança de ter medo do escuro,
Também tinha medo da lua, ainda mais se fosse cheia,
Tinha um tal de lobisomem, assombração, coisas do demo.
Tinha medo disso tudo. Acho que ainda tenho...

Sim,hoje não tem mais caminhão pra pegar rabeira,
Não tem mais meu pai pra ensinar, não tem mais dente pra cair,
Não tem mais sogro pra rezar, não tem mais rezadora pra benzer,
Não tem mais cabelo pra cortar, não tem mais livro pra estudar
Não tem mais campinho pra jogar.

Sim, trago bem dentro de mim a memória viva do ontem
E a certeza clara do amanhã, mas hoje não,
Não estava aqui, escapei do velho de hoje
Pra correr atrás daquela criança, de ontem,
E nem sei se vou voltar, vou rever meus amigos por aqui.


José Veríssimo

 
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