Prosas Poéticas : 

o vinho era o demónio...memórias

 
o vinho era o demónio...memórias

pequena prosa

Hoje lembrei as petingas «umas sardinhas pequenas» eram assadas em tabuleiros no forno de cozer o pão da Sra Ludovina, passadas por farinha de trigo e regadas com um pouco de azeite seriam elas o conduto para depois de comida a sopa, ainda as saboreio com a memória. A mãe amassava o pão com conhecimento e experiência, deixava-o levedar entretanto tapado com um cobertor, depois moldava os pães e colocava-os com uma pá de madeira dentro do forno...a dona aquecia o forno com lenha miúda e quando os tijolos estavam esbranquiçados era sinal que estava pronto a cozer o pão, eram várias as fornadas pois era ali que as mulheres da aldeia coziam o pão que dava para uma semana. Nesse dia as ruas da aldeia cheiravam a pão quente, odor que ainda conservo e não me sai da memória. As crianças não despegavam das saias da mãe, tinhas as faces ruborizadas do calor do forno e eram sempre as primeiras a deliciar-se com o pão acabadinho de cozer, também ele coradinho e a estalar.
Enquanto isto, os homens juntavam-se na praça ou na taberna e conviviam entre si, com um copo de vinho tinto, ali abafavam as mágoas da vida dura, um refúgio para aguentar a cruz do dia a dia, cavando de sol a sol, vida tão dura que os maltratava e lhes tirava a paciência para a mulher e para os filhos. O vinho era o demónio da aldeia, depois de algum reboliço à chegada a casa, nada como uma noite bem dormida para voltar à realidade dos dias custosos e esquecer a bebedeira, a mulher levava seu tempo a perdoar, mas lá se ía habituando e o silêncio era o melhor remédio. O dinheiro era escasso, daí que a roupa de inverno e verão fosse mais ou menos a mesma...lá está o ditado que diz: «Deus dá o frio, conforme a roupa», quanto ao calçado, muitas crianças andavam descalças e as restantes mal calçadas. E eu sempre que podia fugir dos olhares de familiares, também andava descalça e de sandálias na mão, ainda hoje me sinto bem descalça, nada que chegue à liberdade. Não duvido que a vida fosse um fardo para muitos, quase os levava à exaustão, mas o sonho estava sempre presente, tal como os pássaros, o vento, o sossego e o desassossego, o rio a praça e uma vontade de vencer o tempo. A esperança era sentimento engolido na voragem do tempo, havia no entanto que suportar os desvarios duma vida que sempre tinha o seu quê de trágico-cómica.Um dia todos os sonhos acabavam, entregavam-se a uma espécie de desistência, a velhice pesava e a morte lá batia à porta... lá partiam, mas para os que ficavam não morriam nunca...

natalia nuno
rosafogo


do meu blog fio da memória...


Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira.
Johann Wolfgang Von Goethe



 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/06/2014 19:15  Atualizado: 17/06/2014 19:15
 Re: o vinho era o demónio...memórias
Como "consegui" entrar nesse tempo Natália.
O pãozinho a lenha, as sardinhas e: "o vinho era o demónio...memórias" ... para muitos o vinho era "deus" para aqueles que dependiam do vinho e não o vinho a depender deles...pois para muitas famílias o vinho era também uma desgraça.

Por acaso não passei por isso mas vi muita gente (famílias) sofrer pela falta da comida aonde alguns homens não saiam da tasca...e quando saiam era já sem sentido nem destino e quem pagava era a família.

Gostei imenso desta sua prosa.

Abraço
Luzia


Enviado por Tópico
VCruz
Publicado: 18/06/2014 00:40  Atualizado: 18/06/2014 00:40
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 Re: o vinho era o demónio...memórias
Natália, cheguei a sentir o gosto das sardinhas, amo! "Lá em casa", temos a petitinga, será o mesmo peixinho? Ah o fogão de lenha, lembra a fazenda, casa de voinha...sei bem o que é ficar com as faces folgueadas à espera de alguma iguaria deliciosa assar...doces lembranças minhas, de criança que passava as férias na fazenda na beira do rio de contas...meus olhos marejam...obrigada pelas recordações!
Delicioso texto, os homens são homens em qualquer parte do mundo...e as mulheres e crianças...também!
Bjão querida!
V.


Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 18/06/2014 01:04  Atualizado: 18/06/2014 01:04
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 Re: o vinho era o demónio...memórias
Querida Rosa,
Bebi do vinho das tuas palavras,
memorias guardadas na garrafa
das tuas deliciosas histórias
vividas e/ou criadas.
Lindo!
bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/06/2014 10:58  Atualizado: 18/06/2014 10:58
 Re: o vinho era o demónio...memórias
Querida Poetisa,

Embriagada em tuas palavras.

Lindíssimo o teu texto!

Adorei imenso!

Beijos,

Anggela


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/06/2014 16:18  Atualizado: 18/06/2014 16:18
 Re: o vinho era o demónio...memórias
o texto leva-nos a um tempo quando a vida era dura mas também tinha os seus encantos. era uma vida mais natural, e os pés descalços na terra deveriam dar uma sensação de liberdade que os nossos pés hoje não conhecem. parabéns, Natália.