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O MUNDO CONVEXO DE GERÓNIMO PALHAIS

 
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O Mundo Convexo de Gerónimo Palhais.

Gerónimo Palhais, era um padeiro de Vinhais, ateu, sem posição partidária, solteiro e com pouca sorte ao jogo, nunca recuperou dos acontecimentos trágicos que o atiraram para o vazio.
Todas as manhãs saia naquela que era a sua única companhia, uma carrinha Mercedes de 1981 de cor castanha, já comida pela sol, que trouxe de África, era ali que que fazia o transporte diário do pão que abastecia as aldeias de Edrosa, Paçó e Montouto.
Gerónimo era um homem sisudo, cara fechada, pessoa de poucas falas, dizia que rir era para os fracos, ainda hoje não percebi o que quis dizer com aquilo.
A última vez que falei com ele disse-me que só tinha 3 coisas certas na vida, a morte, o cheiro do pão que não lhe saia do nariz, e as saudades de Madalena.
“Madalena? Madalena era a rapariga mais bonita de Vinhais!” - dizia Gerónimo. “Era de dia todo o dia quando estava ao pé dela!” (risos) – acho que a única vez que vi Gerónimo rir foi para falar de Madalena. Nem mesmo quando o cabeçudo do Rogério (parceiro casual das partidas de Sueca) tirava a dentadura para comer caracóis eu via o Gerónimo sorrir..quanto mais soltar gargalhadas.
Madalena morava meia-duzia de casas abaixo da de Gerónimo antes de ir viver para o Luxemburgo. Trabalhava numa loja de tecidos alugada pelos pais no centro de Vinhais.
Morena de cabelos lisos, longos, olhos castanhos, conservadora, raramente usava saias ou qualquer tipo de roupa que mostrasse mais do que aquilo que considerava os limites da decência.
Assim como Gerónimo, mudou-se para Vinhais com os seus pais no principio dos anos 80 depois de algumas tentativas falhadas de ficar por terras Africanas.

Conheceram-se no primeiro dia das festas de Verão do Paçó em Agosto de 1986, em honra de um santo qualquer do qual não lembro o nome.
Nesse dia Gerónimo largou a carrinha mais cedo que o normal, era dia de festa, e por isso queria estar pronto a tempo, entre vestidas e vestimentas, preparativos e preparações, não queria chegar tarde.
-“Foi amor á primeira vista!” – contou-me Gerónimo – Amor á primeira vista…deve ser uma coisa dos anos 80 ou coisa que o valha… desconhecia.
-“Lembro-me como se fosse hoje, levava um vestido azul claro até aos pés, cabelo amarrado, sapatos rasos brancos e segurava um copo de uma bebida vermelha, groselha, penso eu.
Eu ia um bocado desajeitado, camisa branca velha, quase amarela, umas calças de bombazine castanhas e uns sapatos pretos, todos gastos do uso, que usava para trabalhar.
Trocámos olhares durante o baile quase inteiro, até que ganhei coragem para lhe pedir uma dança. Começamos a namorar no dia seguinte…e nos 14 meses que se seguiram fui o homem mais feliz do mundo, acho que até o pão tinha outro sabor, era o que dizia a clientela, não sei se é verdade se não, mas ela…ela preenchia os meus dias de alegria, era a coisa mais importante da minha vida, era a razão pela qual eu tinha forças para sair da cama todos os dias, com ela sentia que a minha vida tinha significado, percebes, Ricardo?” (sorriso)
“Nunca acreditei em Deus nem em coisa que o valha, qual Deus? Se Deus existir acho que é a pior pessoa do mundo, já viste as coisas que ele permite? Sendo ele o salvador? A mim não me enganam!”
Passavam 7 minutos das 8h do dia 15 de Abril de 1988 quando começou a ecoar o som da buzina da carrinha de Gerónimo. Como sempre, passava pela casa de Madalena para deixar a encomenda do dia. Era um dia de chuva, muita chuva, Gerónimo diz que não se lembra de ver chover assim em Vinhais.
“Fiquei á porta dela cerca de 10 minutos, como chovia não sai da carrinha. Toquei a buzina montes de vezes mas ninguem veio á porta. Calculei que tivessem saido, mas tao cedo? Deixei o pão na chapeleira da porta principal, como era gente de confiança não me importava de receber depois.”
Gerónimo não chegou a receber do pão. Madalena tinha partido para o Luxemburgo (soube que foi para o Luxemburgo porque o nome de familia tinha aparecido num jornal qualquer sobre empresarios no estrangeiro) sem aviso, sem despedidas, sem uma carta, sem uma morada, sem contactos.
“Ainda hoje não sei o que se passou, não sei porque fugiram, não sei se está viva se está morta. O meu sorriso foi com ela, bem como o pouco que restava de mim. A única coisa com que fiquei foi com este pão.” (Um pão duro como pedra, sem bulor, milagrosamente, com cerca de 30 anos.) “Este pão era para ela.” (foi aqui que me arrepiei) “Sabes Ricardo… as pessoas mudam-nos, cada pessoa que passa nas nossas vidas leva um bocado de nós, é por isso que os velhos rezingões que vês na rua são assim, porque a vida já passou por eles e tirou-lhes o que tinha a tirar, ninguém tem mau feitio só porque sim, sabes?”
Soube que Gerónimo teve várias mulheres depois de Madalena, mas nenhuma conseguiu preencher o vazio que ela deixou. Calculo que Gerónimo podia ter sido feliz, mas escolheu não ser, escolheu ser fiel ao único amor da sua vida, mesmo que isso implicasse a solidão. Gerónimo não tinha vergonha disso, até acho que se orgulhava.
“Esta rapaziada agora sabe lá o que é o amor, trocam de namorados como de camisola, está tudo podre, o mundo está podre! Podem gozar comigo, mas não sabem que só gozam com eles mesmos, este menino que aqui está amou como nenhum de vocês vai algum dia amar.”
As últimas palavras de Gerónimo para mim foram: “ Ricardo, no dia em que alguem descobrir melhor razão para a nossa existência que o amor, nesse dia, se cá estiveres, escreve uma carta e deixa-a na minha campa, quando tiver tempo, vou lê-la.”


BlueDrummer


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BlueDrummer
 
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Enviado por Tópico
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Publicado: 29/09/2014 13:12  Atualizado: 29/09/2014 13:12
 Re: O MUNDO CONVEXO DE GERÓNIMO PALHAIS
Gerónimo n meu ponto de vista era mais q um padeiro,era um sábio q tinha uma visão muito profunda diante da vida, sabia analisar o interior das pessoas, achei da hora,a explicação dele para o Ricardo a respeito do pq os velhos são «rezingões» e a lealdade dele a dona do seu coração. essa parte q ele diz:«“Esta rapaziada agora sabe lá o que é o amor, trocam de namorados como de camisola, está tudo podre, o mundo está podre!» é muito verdade,infelizmente qt mais se fala de amor menos sabem do q falam. curti muito ler seu texto,tem muito q pensar de bom.