Poemas : 

Entre e Cruz e a Espada-2

 
ENTRE A CRUZ E A ESPADA
II
Mudança de Ares
“Meia noite acorda um francês, sabe da hora, não sabe do mês, tem esporas e não é cavaleiro, cava no chão e não acha dinheiro.” É o galo que canta todos os dias naquele horário costumeiro, como se estivesse a seguir os ponteiros de um relógio. E foi com o canto do galo, à meia
noite, que Matheus despertou e não conseguiu mais adormecer. Olhou ao seu lado e viu que Fernando ressonava em sono profundo. Lentamente se levantou e caminhou até a sala e abriu a janela, pondo-se a respirar o ar puro . Vislumbrava em sua mente seu passado e as recordações deixavam-no com lágrimas nos olhos. Bem nítidas as imagens do pai e da mãe e, um pouco mais distantes, a da irmã. Interessante como a vida mexe e remexe com o destino das pessoas, ora as tornando felizes, ora as abandonando ao relento. Matheus começou a refletir sobre seu próprio destino, até onde a existência o havia posto. Agora tinha um novo nome,
um novo pai, novas aspirações... Era conscientemente grato ao que Fernando fizera por si, talvez se houvesse caído noutras mãos, as coisas tomassem outros rumos, ou voltariam às de outrora. Realmente, o famoso chavão que a criatura humana atribui à Divindade: “Deus escreve
certo por linhas tortas.” Buscou em sua mente ainda infantil trazer à lume uma interpretação plausível para tais dizeres e chegou à conclusão que Deus não escreve certo por linhas tortas, Deus escreve sempre em linha reta, os homens são que tropeçam em suas próprias imperfeições, em suas próprias adversidades. O mundo não é torto, pensou, tortas são as criaturas humanas com seus atributos de egoísmo, hipocrisia, ambição, poder... Mergulhou numa outra linha de raciocínio e, mais uma vez, Deus era o pivô do pensamento central: “A justiça divina tarda, mas não falha.” Ora, matutou, a justiça divina não tarda, ela sempre acontece na hora
exata, no momento previamente traçado pelo Altíssimo. Falha, não! Não falhará nunca, pois, caso assim fosse, Deus não seria Deus. Como os homens são presunçosos, idealizam desejar entenderem os propósitos do Pai Celestial, isso não é dado à consciência humana, ainda nos
rastejamos e muito há o que se percorrer para que possamos nos aproximarmos, apenas nos aproximarmos, da Perfeição Eterna.
Matheus Cintra, 14 anos, somente uma criança e com tão elevado índice de raciocínio. Voltou a mergulhar na saudade do pretérito e percebeu quanto o Pai Amantíssimo houvera sido tão complacente em relação a si, livrando-o da morte certa, oferecendo-lhe uma nova oportunidade de recomeçar, de lutar em busca dos seus ideais e, ao seu lado, colocou não um qualquer, porém um homem que o acolheu, que o recebeu de braços abertos, que lhe deu tudo novamente a fim de que pudesse enterrar o passado. Juntou as mãos, olhou para o céu estrelado e agradeceu infinitamente à Providência seu destino. Cabia a si, agora, fazer jus à chance do recomeço e buscar na convivência diária do cotidiano, inicialmente o elemento gratidão, depois a faina e o desprendimento . Bocejou e se notou envolto de bastante sono. Fechou a janela e voltou ao quarto. Deitou-se e logo estava a dormir.
O dia amanhecera meio chuvoso e um friozinho gostoso invadia a cama. Matheus tentava encontrar uma posição melhor para sentir-se mais aquecido. Fernando Cintra abrira os olhos e diagnosticara a procura do filho. Solidariamente levantou sua coberta e disse baixinho:
- Hoje é sábado, podemos dormir mais um pouco. Venha, meta-se aqui debaixo do meu cobertor para agasalhar-se. Está muito frio.
- Obrigado – agradeceu – e se enfiou embaixo das cobertas de Fernando. Beijou-o no rosto, pôs a cabeça sobre o peito do pai – Sim, hoje é sábado, descansemos mais.
Estava protegido e logo adormeceu profundamente.
Fernando Cintra despertou por volta das 9 horas. Observou que Matheus dormia e não se mexeu. Deixou o tempo correr e que dormisse até a hora que quisesse. Eram 10 e 20 quando Matheus, finalmente, abriu os olhos.
- Bom dia! – disse-lhe Fernando – Dormiu bem?
- O que você acha? – retrucou Matheus – dormir num carinho desse é sentir-se protegido pelo resto da vida. Obrigado! Que faremos hoje? Tem algum projeto para o dia?
- Não tenho... você tem?
- Como está seu bolso?
- Hum... digamos que não esteja recheado, mas que tem o suficiente para fazermos uma programação diferente. O que você sugere?
- Sugiro passearmos pelo calçadão da praia, tomarmos água de coco e almoçarmos num self-service. Que tal?
- Adorei a ideia, mas... e à tarde?
- Dependendo de quanto tenha disponível, à tarde poderemos ir até o shopping e assistirmos a um bom filme...
-Excelente! E à noite?
- Bem, à noite... à noite... deixe-me ver...à noite poderíamos ficar em casa, prosear e jogar cartas. Que acha?
- Você distribuiu bem nosso dia. Agora levantemos e tomemos banho a fim de que possamos aproveitar da melhor maneira o que você nos traçou.
- Quer ir logo ou quer que eu vá primeiro? – Indagou Matheus.
- Tanto faz para mim... não quer tomar banho comigo?
- Pode ser – Matheus respondeu – não há segredos entre nós.
Encaminharam-se para o chuveiro. O banho foi gostoso e demorado. Enxugaram-se, vestiram-se e foram até a cozinha comer alguma coisa.
Saíram e começaram a pôr em prática o que houveram traçado para o dia. Passearam pelo calçadão, beberam água de coco, conversaram coisas de si mesmos e tomaram um delicioso sorvete. Posteriormente procuraram por um self-service e almoçaram bem. Retornaram para
casa e tomaram um novo banho, vestiram outras roupas e foram até o shopping. Como não havia filmes interessantes, resolveram jogar boliche e percorreram com os olhos as vitrines das lojas.
- Bonito este casaco, não é Matheus? – Perguntou Fernando.
- Muito lindo! Deve custar uma nota...
- Quer que o compre para você?
- Não! Não cometa esta loucura, é muito caro...
- Não quero saber se é caro... quero saber se você o deseja – Colocou Fernando.
- Entre desejar algo e poder tê-lo há uma diferença muito grande. – Matheus respondeu.
- Decidi: o casaco será seu!
Entraram na loja e Fernando comprou o casaco. Matheus ficara radiante.
- Você não existe! – disse – Obrigado!
Ao saírem da loja, olharam para o relógio. Eram exatamente 8 e meia.
- Puxa! – disse Fernando – nem notamos o tempo passar. Vamos para casa?
- Sim, está mais do que na hora.
Antes de chegarem ao pequeno apartamento na praia de Candeias, Jaboatão dos Guararapes, onde moravam, Fernando passou por uma banca e comprou algumas revistas e o jornal do dia. Chegaram em casa. Matheus era só alegrias com seu casaco novo.
- Queria todo filho ter um pai como você! – afirmou - estou muito feliz, sabia?
Fernando não deixou por menos.
- Queria todo pai ter um filho como você! Estou muito feliz também, sabia?
Abraçaram-se e trocaram beijos no rosto.
- Venha tomar banho – disse Fernando – depois você tem algo para comer na geladeira e estas revistas para ler.
Tomaram banho, alimentaram-se e ficaram na sala. Enquanto Matheus Cintra curtia a leitura das revistas, Fernando folheava o jornal e se deparou com uma boa surpresa.
- Matheus! Que coisa boa, Matheus! Nem esperava mais por isto...
- O que foi, pai? – Matheus perguntou.
- Estou sendo convocado para assumir um emprego federal... Quase dois anos que fiz esse concurso, já havia perdido as esperanças de ser chamado. Deus seja louvado!
- E para onde é? – Questionou.
- Receita Federal! Técnico alfandegário da Receita. Nossa vida vai mudar da água para o vinho...
- Que beleza, pai! – parabenizou – E o salário é bom?
- Doze mil e setecentos mais outras vantagens... Deve ficar em torno dos 15...
- Fico feliz por você, é um sonho seu que se concretiza.
- Mas... teremos de nos mudarmos.
- Para onde?
- Não sei ainda, vou tomar conhecimento na segunda-feira, dia que devo me apresentar para os exames de praxe.
- Vai levar-me com você?
- Isto é pergunta que se faça? Lógico, você é meu filho, estará onde eu estiver.
Começaram a fazer planos. A vida dava uma guinada bastante alta na vida de ambos. Eram todos sorrisos.
- Agora terei condições de oferecer-lhe uma vida digna. – Confessou Fernando – poderei realizar seus sonhos, comprar um computador, um bom som, dar-lhe uma bicicleta de marca e vesti-lo com as melhores roupas.
- Não necessita de gastar tanto comigo – Matheus disse – só sua presença para mim basta.
Outra vez se abraçaram e trocaram ósculos. Depois o cansaço e o sono os venceram e resolveram ir dormir. A noite foi tranquila. Despertaram no domingo às 9 e meia e passaram o dia em casa, não foram a lugar algum, contentaram-se com os programas de televisão e com suas presenças face a face.
Na segunda-feira saíram cedo. Fernando deixou Matheus na escola e foi ao prédio da Receita, apresentar-se. Ficou sabendo que houvera sido designado para ir trabalhar no Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Na hora do almoço fora buscar Matheus no colégio e, enquanto almoçavam,
contou-lhe as novidades.
- Então vamos beber chimarrão? Comer um bom churrasco e assistir a partidas de Grêmio e Internacional? – Indagou Matheus.
- Tudo isto e muito mais. Está feliz?
- Como não poderia estar? Se você está feliz, eu também estou... Se você está triste, eu também estou. Eu sou você! Quando partiremos?
- Daqui a uma semana e olha que já fui nomeado e já estou a ganhar.
Terminaram de almoçar e foram para casa. Fernando teria de começar a preparar as coisas para a viagem. Tomou uma decisão: venderia todos os móveis e os compraria tudo novo em Porto Alegre. Foi que fez. Em casa nada mais restava, a não ser as malas prontas para a viagem, nada mais. O governo ofereceu as passagens e, na segunda-feira seguinte, embarcaram pela manhã. Chegaram à capital do Rio Grande do Sul já anoitecendo e rumaram com as malas para uma hospedaria barata e aí ficaram até que recebesse o primeiro salário e pudesse comprar os novos móveis. Providenciou uma escola para Matheus que passara a estudar no período da tarde e alugou um bom apartamento às margens do rio Guaíba. A felicidade era a tônica de suas vidas. Logo um mês se passou e Fernando recebera seus primeiros proventos do novo trabalho. Aos poucos foi mobiliando o apartamento e o deixou muito bonito e arrumado. Agora cada qual tinha seu quarto, ambos com suíte. Comprou roupas novas para si e para o filho e os dias seguiam adiante. Tinham o dia inteiro só para eles. Fernando saía cedo para o trabalho em dois expedientes; Matheus acordava um pouco mais tarde, ia almoçar e rumava para a escola. Só se encontravam à noite, quando colocavam as coisas do dia um para o outro.
Certa noite Matheus o esperava ansiosamente. Fernando chegou um pouco mais tarde do que o costume, por volta das 21 horas.
- Ainda com a farda da escola? –Perguntou Fernando.
- Sim, tenho algo para conversar com você. É algo que está me machucando aqui dentro – E mostrou o coração.
- O que está acontecendo? Fale!
- É claro que estou feliz com minha nova vida, mas... faz tempo que não temos horas só para nós dois...
- Como assim? – Fernando indagou. – Seja mais claro.
- Estamos a dormir em quartos separados, nunca mais tomamos um banho juntos, faz tempo que não nos sentamos para dialogar como antes... Estou sentindo falta de tudo isso...
- Ah... por isso ainda está com a farda da escola... entendi... – disse Fernando – Também estou a sentir falta de tudo isso. Venha tomar banho comigo e hoje você vem dormir em minha companhia, está bem assim?
- Claro, é de tudo isso que sinto falta, sinto falta de você. – Respondeu Matheus.
Despiram-se e foram tomar banho, por sinal um longo banho. Enquanto Fernando o enxugava, disse-lhe:
- Preciso marcar médico para você.
- Médico para mim? E eu estou doente, por acaso?
- Não se vai ao médico só quando se estar doente – explicou Fernando – Eu quero que um endocrinologista o veja.
- Que tipo de médico é um endocrinologista? – Matheus interrogou.
- Você é um garoto de 14 anos, logo vai completar 15 e eu quero que o médico me diga se seu desenvolvimento hormonal vai bem...
- Claro que vai, veja... E levantou os braços e mostrou as axilas onde havia pelos que começavam a aparecer, apontou para os pelos púbicos como a dizer que os tinha em grande quantidade e mostrou o pênis, fazendo notar que não tinha fimose.
Fernando ria a valer.
- De quê está rindo? – Matheus inquiriu.
- De sua bobagem - replicou Fernando – É evidente que já percebi que você está bem, porém nunca é demais ouvir a palavra do médico.
- Você deixa eu desobedecê-lo pela primeira vez?
- Por que?
- Porque já entendi que para o médico dizer que estou bem, ele vai precisar ver-me nu... e eu não gosto...
- Está bem – disse Fernando – não quero contrariar você. Esqueçamos esse negócio de médico, certo?
- Você não fica aborrecido comigo? – Quis saber Matheus.
- Lógico que não! Como posso me aborrecer com o amor de minha vida? Você chegou para dar sentido ao meu viver, antes tão solitário e triste. Hoje não, tudo mudou. Antes eu trabalhava sem perspectivas para os meus dias futuros, agora trabalho feliz, porque tenho trabalhado para você e para ofertar-lhe o melhor que possa. Sua chegada em minha vida abençoou-me. Eu amo você!
Matheus chorava e o abraçou com carinho.
- Eu também amo você – disse – você salvou minha vida e abriu as portas para que meu destino tivesse um sentido. Nem sei o que seria de mim sem você... obrigado por tudo!
Terminaram o banho e foram até a cozinha comer alguma coisa, depois foram dormir conforme Fernando prometera.
Ligação de outras vidas? Quem sabe... Intenso era o amor que os unia, um sentimento tão forte que Matheus pouco se lembrava, agora, da vida de outrora. O amor remove montanhas!
FIM DO II CAPÍTULO

 
Autor
imelo10
Autor
 
Texto
Data
Leituras
587
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.