Poemas : 

Morphético

 
.

Acordou naquela noite
no meio da noite
como se fosse o dia
já satisfeito do sono
do morrer vivo do dia a dia
do morrer vivo nas noites frias
e secas
umas sozinhas
outras com companhias
talvez secas
do pós sexo casual.
Acordou de supetão
com o torço já ereto
reto
em L
na cama
pernas estendidas
entendendo nada.
Agora deveria dormir
deveria estar lá
no lado que se fica
quando se vai do corpo
no sono.
Não estava.
O silêncio urbano acusava
a anarquia temporal
que fazem
os notívagos e insônes.
Acordam quando se dorme
e as vezes dormem quando
o mundo acordou de estar
acordado.
Quase todos.
Por um motivo qualquer
desconfiava
que nunca voltaria a dormir.
Nunca.
Os olhos estrelados
fitavam o teto
quase-branco
de encardido
e o globo de luz
que lembrava uma lua
apagada.
Levantou as mãos
para conferir
se haviam patas de insetos
ou mãos ainda
de primatas,
como se o pesadelo do Kafka
houvesse caído de paraquedas
nas suas pálpebras.
Era gente ainda.
Como conhecia serem as gentes,
fisicamente.
Só não dormia.

.

 
Autor
thiagodebarros
 
Texto
Data
Leituras
774
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
15 pontos
1
3
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Margô_T
Publicado: 30/08/2016 19:51  Atualizado: 30/08/2016 19:51
Da casa!
Usuário desde: 27/06/2016
Localidade: Lisboa
Mensagens: 308
 Re: Morphético
Morphético… Uma mistura de Morfeu, o deus dos sonhos, e… “profético”? (dado o tom de versos como “Por um motivo qualquer/desconfiava/que nunca voltaria a dormir./Nunca.”?)
Afastando-me do título - ambíguo como os próprios sonhos que nos surgem reais até descerrarmos os olhos… - aproximo-me de um Morfeu terreno que “deveria estar lá/no lado que se fica/quando se vai do corpo/no sono”, mas “não estava”
porque acordou, a meio da noite, achando que a noite já era dia, depois de ter estado em pleno sono (esse “morrer vivo do dia-a-dia”).
Acordou sozinho ou com companhia (quem o saberá?), escrevendo já no ar um “L” bem inspirado (os teus recursos gráficos são demais…), de “pernas estendidas” mas “entendendo nada”… ainda meio estremunhado, provavelmente espreguiçando-se, tentando habituar-se, talvez, à luz do dia-noite.
Lá fora, “O silêncio urbano acusava/a anarquia temporal/que fazem/os notívagos e insônes.”, esses que

“Acordam quando se dorme
e às vezes dormem quando
o mundo acordou de estar
acordado.”


“Quase todos.”, na verdade…
porque todos nós vamos dormindo, mesmo no dia-a-dia (ou especialmente no dia-a-dia), quando nos desligamos de nós próprios e entramos em “sistema automático”, repetindo/reproduzindo (sempre) os mesmos gestos - como qualquer máquina (com defeitos de fabrico) numa indústria…

De olhos ainda “estrelados” da sua celestial viagem pelo domínio mirabolante dos sonhos, Morfeu fita o tecto “quase-branco/de encardido” e vê o “globo de luz” que lembra “uma lua” (talvez porque seja mesmo a lua, como nos elucidou o sujeito poético logo no início… mas Morfeu é morphético e sempre viverá mais etéreo do que nós, escapando-lhe estes detalhes).
Levantando “as mãos”, Morfeu procura assegurar-se que ainda é Morfeu (o nosso Morfeu terreno, saliente-se, já que o Morfeu divino não se preocupa com estas – e outras – futilidades... sendo, aliás, muito dado a múltiplas metamorfoses, transmudando-se nos vários corpos amados dos corpos que sonham com os corpos amados…
Morfeu, “um verdadeiro artista na imitação/de formas. Nenhum outro havia mais hábil a representar/o andar, as feições do rosto, o timbre de uma voz, do que ele.”, diz-nos Ovídio nas “Metamorfoses”).
Mas, voltando às “mãos”…
Morfeu procura um sinal irrefutável de que Kafka não teve lugar neste nosso momentâneo ídolo (com quem entretanto criámos empatia – culpa do autor), sendo as suas mãos “ainda/de primatas” e não “patas de insectos”…
e fica, portanto, todo o leitor sossegado porque Morfeu é “gente ainda” ou, pelo menos, é tão gente como “as gentes” que conhece (argumento ainda mais consolador, diria…).
As pálpebras de Morfeu não haviam, portanto-portanto (já foi um “portanto” isolado há bocado e estou com falta de discernimento para pensar em expressões com igual sentido, por isso abraço a redundância – culpa da morfina do Morfeu), sido tomadas por um pára-quedas kafkiano e, abençoada personagem!, o seu único estorvo é não dormir.

Apesar do final feliz descrito, há um trecho ardiloso que fica a rondar-nos:
Por um motivo qualquer/desconfiava/que nunca voltaria a dormir./Nunca.”

Morphético, pois então…

Gostei!