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Fiz uma cruz

 
Quando julguei que cabia uma cruz, comecei por invadir aquele espaço com um singelo e débil ponto final. Existia tinta na minha esferográfica, isso era um dado muito importante para avançar. Ousei meter aquela mão hábil no bolso – é claro que antes postara a caneta por sobre a mesa – e, obstinadamente, iniciei um tamborilar de dedos que mais tarde (vim a saber) se revelaria um tanto ou quanto desafortunado. Logo que libertei a mão da algibeira notei que os meus níveis de confiança estavam altíssimos, fenómeno que não pode deixar indiferente todo aquele que está habilitado a adivinhar os indícios de uma depressão. Contudo, como o ar estava sereníssimo e a luz da manhã arremetia violentamente com todo o seu potencial era bastante desculpável que eu tivesse pensado que…
Retomei a caneta, visei o papel, agora com uma surpreendente tranquilidade e sem qualquer tipo de escrúpulos avancei para o quadrilátero que se postara à direita da letra L… e também abaixo da letra T… julgo recordar-me que havia ainda por sobre a quadrícula uma ilustração onde arvorava, é quase certo, um rapazinho moreno a fugir de um cão… incrivelmente branco!
E foi nestas circunstâncias que arremeti contra o papel timbrado, risquei uma linha oblíqua, depois arrisquei uma outra que lhe era perpendicular e nesse instante senti que, uma vez que os quatro vértices do quadrilátero haviam sido tocados, uma vez que os dois traços contínuos estavam já lá e ainda por cima se cruzavam no centro imaginário do coiso… e os dois com a mesma cor…
Estava feito o negócio ou qualquer outra coisa que com ele eu o confundi. Guardei a caneta (era minha) no bolso (que ainda era meu) e resvalei para um átrio bem próximo onde duas pessoas conversavam sobre o aumento das despesas com a electricidade. A luz do dia estava cada vez mais forte e só naquele momento repararei que trazia no punho direito o relógio que afortunadamente a minha mãe me oferecera um pouco antes da hipoteca… Ato contínuo olhei para o pulso esquerdo como que antecipando o movimento que se seguiria, ao mesmo tempo que com essa mesma mão já programara a retirada do relógio do pulso errado. O que aconteceu a seguir, falta-me agora aquela caneta para o relatar, mas escrevo-o com os dedos que ao dia de hoje me sobraram. Ao mesmo tempo que divisei o relógio no meu pulso habitual tacteei, no pulso direito, uma enorme protuberância quistosa na parte dorsal do braço por debaixo da manga branca daquela amaldiçoada camisa. O que me parecera um relógio veio a revelar-se um repugnante e assustadiço inchaço amarelo, de grande relevo, muito parecido com um botão colorido de flor ou então com aqueles típicos chapéuzinhos de palha daquelas meninas do campo que…
Era um tumor muito atípico, pois à medida que nele remexia, ele tinha a faculdade de se amoldar a todos os movimentos dos dedos (independentemente da força de compressão aplicada). E não doía nada, o magano! Como que se infiltrasse por debaixo de todos os outros tecidos biológicos, ou então deixo aqui a hipótese de que o mesmo tinha a possibilidade de permear por entre todas as células e ossos. Certo é que se espalhava como às vezes se espalham as cócegas… quando são bem feitas!
Ri porquanto ao mesmo tempo observava e experimentava com avidez a natureza daquela esquisita tumefacção. As pessoas da electricidade olharam-me, não sem um certo choque inicial e logo lançaram o olhar por todo o átrio, desconfiadas à brava, como o fazem todas as pessoas sérias que são surpreendidas por um acontecimento totalmente inesperado. Aproximei-me dessas duas pessoas e elas mesmas como não mirassem nenhum olhar cúmplice ou algum trejeito consolador, resolveram transferir a sua cismada conversa tarifária para um qualquer local bem longe de mim. Talvez me tenham tomado por uma daquelas andrajosas criaturas que exibem falsas chagas nas sombras dos edifícios públicos e que em dias de muito sol se atrevem mesmo a importunar os outros cidadãos em certos locais respeitáveis mas de fácil acesso. Nem tive tempo de ripostar, pois uma já prolongada série de risadas sufocadas atravessou-se-me pelas cordas vocais e todo aquele meu espanto não foi freio capaz de travar tal involuntária algazarra.
- Por que se ri senhor? – Inquiriu, solícita, a voz acriançada de uma velhota carregada de cartões. – Não quer aproveitar a sua boa disposição e contribuir para… - não acabou a sua frase e saiu afastando-se de mim com um perplexo nojo.
- Espere…eu…- ia dizer-lhe que tinha duas moedas de vinte cêntimos e talvez, se a causa fosse… poderia contribuir de bom grado…
Abri os braços procurando mostrar veemência e ao fazê-lo cessou-se-me a tirania das cócegas e pude por fim entabular uma questão (que já me sufocava a garganta) ao primeiro funcionário que apareceu. Este olhou-me, indiferente, como o fazem a maioria dos burocratas nas suas entrevistas com o público, e cuspiu-me um muito desagradável e monocórdico: - Que lhe aconteceu? – Ia eu a responder e já ele se afastava ritmado dizendo: - Xiiiii… o que lhe aconteceu…
-O secretário? – gritei. – Não viu o secretário?
Quem, caros leitores, encontrar na sua vida uma qualquer situação com grande verosimilhança com esta minha… deverá, uf… não, não digo já! O vilão, crápula desta vida, apressou depois o passo num solilóquio monocórdico e chiante e por um momento apeteceu-me levar a mão ao bolso da caneta e…
Efectuei, diligentemente, com a serenidade possível, uma busca exaustiva pelos corredores e compartimentos acessíveis, na esperança vã de encontrar o tal secretário que me…Mas quê? Nunca ele. Misérias, apenas e só misérias: “não o vi”, “acabou de sair”, “ainda estive com ele ontem ao telefone”, “mas sabe, talvez possa encontra-lo na…”, “passe por aqui mais logo”. Comecei a sentir cócegas muito mal feitas na zona pulso (tinha entretanto apertado de novo o punho da manga da camisa). Era certo que o tumor havia crescido e se lançava imberbemente de encontro à manga já húmida.
-Estão agora a chegar umas coisas importantes. O senhor não pode estar aqui! – ouvi estas palavras repetirem-se por duas ou três vezes e só depois verifiquei que tinha o meus rosto colado a uma janela envidraçada de onde se avistavam, num amplo compartimento, largas pessoas em desalinhado burburinho. Eram tantos os papéis; inúmeras as canetas - essas espalhavam-se pelas mesas atoladas ou então apresentavam-se eriçadas no interior de objectos cilíndricos dispostos por sobre as mesas. E adivinhavam-se tantos bolsos! Tinha a cabeça em tal frenesi que já não me lembrava das palavras com que nomeavam as coisas. Nada fazia sentido. “Se também tu tivesses guardado assim a tua caneta…Agora num bolso!… Aprende pois!” A minha modorra continuou. Vieram uns sujeitos com uniformes de oleado florescente, se a memória não mente. Disseram-me: -Não pode estar nesta zona exclusiva! Venha connosco! Já! - Afastaram-me tranquilamente e eu só pude sentir um orgulho amplo de não ser como eles. O tumor, a caneta, os papéis, a camisa húmida, o relógio verdadeiro, aquela cruz bem intencionada, até a tinta… “Onde foi que falhei! Não, não é possível. Eu fiz tudo bem” foi isso que pensei. E recomecei a sorrir sem interrupção alguma (ALGUMA repito) até ao dia de hoje.
Neste momento escrevo, por isso, a sorrir, frente ao computador que ainda me resta com os poucos dedos que… ainda me sobram…
Nu, descalço, sem bolsos, sem caneta, sem camisa, relógio parado na casa hipotecada sem móveis e sem mãe (que Deus a guarde – sobretudo nestes primeiros dias). Hoje vêm cortar a electricidade cá de casa. Bem tinham razão aqueles dois interlocutores – como ela está cara! Antes que isso, porém, aconteça, vou acabar este conto no meu computador. Desculpem mas não o vou guardar em nenhuma pasta. Para quê?!
Aquele quadrilátero branco… as referências do L, do M, do cão branco… Já não existem…Interrompendo a parede o mesmo quadrilátero na minha parede…Não um ponto de experimentação, mas dois, e muito bem definidos. Hoje os homens vêm desligar a electricidade. Vêm desocupar aqueles pontos para mim.
Retiro o cabo do computador da ficha. O texto word perde-se no escuro do ecrã e portanto, para vocês, a minha história acaba aqui.
A mim, apresentam-se, inéditos, dois buracos surpreendentemente belos e simétricos – dois pontos finais nada titubeantes nem experimentais e de um alinhamento tão conveniente... Uma afirmação plena de um quadrilátero cheio de vida. Com dois olhos!
Diviso em meu membro direito canceroso apenas dois dedos. Eis o secretário, finalmente o secretário com seus dois olhinhos bem escuros e melíferos. É com esta mesma mão que te vou foder o focinho!

 
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fcsguimaraes
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/12/2014 17:24  Atualizado: 15/12/2014 17:24
 Re: Fiz uma cruz
Morto por quem o mata que pretende,
Ou que extremos de amor há que nos negue
Quem culpas nossas chama e ofensas suas
na cruz

Frei Agostinho da Cruz