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A ALMA PENADA - Um Conto Popular

 
Conta-se que em uma cidadezinha do interior do Brasil, morava uma idosa e viúva senhora, em companhia de um chipanzé que ganhara nos idos tempos em que ela vivia no circo.
• Certo dia, essa senhora caiu doente, e a cada dia adoecendo cada vez mais, já não podia sair do quarto, sendo amparada pelas comadres da freguesia. Vencida afinal pela enfermidade e pela velhice, deixou à senhora este mundo, confortada com a comunhão e a extrema unção realizada pelo padre da paróquia.
• Enquanto as beatas preparavam as cerimônias fúnebres e rezavam os últimos ofícios pela defunta, o chipanzé, num canto do quarto, observava, com atenção, a tudo que se passava. As comadres amortalharam o corpo e o colocaram no caixão, veio o padre e, juntamente com a irmandade religiosa, realizou as cerimônias de costume: rezar os hinos e fazer as orações pela alma da defunta. Em seguida, o corpo foi levado para a igreja, que ficava próxima, para que se desse o velório.
• O macaco que durante a encomenda do corpo não dera um pio, mas observou tudo; agora voltava a atenção às coisas que o rodeavam. Começou a despejar as caixas, as gavetas e a examinar o que continham. Como tinha observado a defunta nos seus trajes, a forma como tinha a cabeça coberta pela mortalha, o macaco começou a se vestir com umas roupas velhas exatamente do modo que presenciara; a semelhança era perfeita. Cansado deitou-se na cama, jogou por cima de si o lençol que cobrira a defunta e ali se deixou ficar até adormecer.
• O velório prosseguia na igreja, quando uma das comadres lembrou-se de que, a falecida, havia lhe pedido para ser enterrada junto com bíblia dela. Então, as comadres retornaram a casa para buscar o livro santo. Quando entraram no quarto e viram o macaco amortalhado, fugiram aterrorizadas, pensando terem visto, na realidade, o corpo ou a alma da defunta. Na igreja, depois de tomarem água com açúcar e recuperado o fôlego, contaram que tinham visto a alma da falecida comadre repousando no leito onde estivera doente.
• A notícia se espalhou pela freguesia e foram todos para a igreja. Dois amigos, disseram que as comadres estavam “vendo coisas” e resolveram ir, juntos, ao quarto da falecida. Como a noite se aproximava, sentiram, apesar de demonstrarem indiferença, uma sensação desagradável, ao entrar no quarto. Aproximando-se da cama, viram, e depois ouviram, uma pessoa respirar; quando perceberam que a roupa se movia como quisesse saltar da cama, fugiram em debelada carreira até o interior da igreja.
• Chamaram o padre e o caso foi explicado. Quando soube do que se tratava, o padre pediu ao sacristão para lhe trazer a grande cruz de madeira, a bíblia e o vaso de água benta. Colocou a estola e julgando-se armado para afugentar o demônio seguiu com suas beatas para a casa da defunta.
• Entoando os sete salmos e orações, subiram as escadas; indo o sacristão, por ordem do padre, à frente do cortejo, com o crucifixo erguido. Quando chegaram à porta do quarto, apesar da água benta que o padre vinha espalhando, o cortejo se deixou ficar para trás, enquanto o valente sacerdote ordenava ao sacristão que avançasse. Foi o que ele fez, seguido somente pelo seu superior. Aproximando-se da cama viram o chipanzé amortalhado, como se fosse a alma da defunta. Murmuraram algumas orações, agitaram a cruz durante algum tempo e nada da alma ir embora. Com vergonha de recuar, o sacerdote começou a espalhar água benta em maior quantidade, gritando: “Vai-te embora satanás, vai-te embora...” e tacou uma bem servida porção de água benta sobre o macaco, enquanto o sacristão agitava freneticamente a grande cruz. O chipanzé temendo que fosse cumprimentado com uma pancada da enorme cruz, começou a fazer caretas e a guinchar de um modo tão macabro, que o vaso sagrado caiu das mãos do padre e o sacristão deixou tombar a cruz fugindo ambos na maior carreira. Tal era a pressa que caiu um por cima do outro e, rolando escada abaixo, estatelaram-se no piso da casa.
Ao ouvirem os gritos do padre: Jesus! Jesus!... As beatas, correram ao seu encontro, perguntando ansiosamente o que tinha acontecido. Os dois, estarrecidos, olhavam para elas, sem poderem prenunciar uma palavra sequer. Mas era só olhar para o rostos dos dois e saber a resposta. Por fim o padre teve força suficiente paras dizer:
• — É verdade, meus filhas, vi a falecida na forma de um feroz demônio!...
• Mal ele tinha acabado de pronunciar estas palavras, desce pelas malfadadas escadas, o chipanzé arrastando um lençol branco. E o resto vocês podem imaginar.
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• Este conto foi inspirado na obra de Matteo Bandello (1485-1561), escritor italiano. Muitos escritores famosos, que surgiram depois, em seus escritos foram buscar fonte de inspiração para seus textos, não escapando o próprio Shakespeare, que retirou assunto para Romeu e Julieta, Musset e Conde Barbarini.
• Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário.
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RSérgio

 
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Enviado por Tópico
Pedra Filosofal
Publicado: 03/02/2008 12:36  Atualizado: 03/02/2008 12:36
Colaborador
Usuário desde: 17/09/2007
Localidade: Barreiro
Mensagens: 1273
 Re: A ALMA PENADA - Um Conto Popular
tenho uma dúvida... quem é que apanhou o susto maior? o chinpanzé, o padre ou as beatas?

Muito bem.Continua


Enviado por Tópico
britoribeiro
Publicado: 04/02/2008 00:51  Atualizado: 04/02/2008 00:51
Muito Participativo
Usuário desde: 08/01/2008
Localidade: Vila Praia de Âncora
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 Re: A ALMA PENADA - Um Conto Popular
Gostei dessa, o sacritão à frente com a cruz. O padre atrás, certamente tremendo de medo.
Muito bem contado!

Abraço