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SAARA

 
Tags:  SONETOS 2011  
 
SAARA

I

Pelo planalto que se descortina
Do alto d'essa montanha desolada,
Observo a imensidão a além do nada
E os caminhos percorridos em vã sina.

Atravesso um deserto: Poeira fina
Pedras e areia me têm servido de estrada.
Sem embargo, segui minha jornada,
Feliz a uns olhos verdes de menina.

Não há oásis, porém, após as dunas,
Sim mais dunas e mais dunas de areia!
Para, só, vagar sob a lua cheia...

Como em tanta aridez verdes lagunas?
Percebo ora miragens esses olhos
E quedo entre ruínas e restolhos...

* * *

II

O problema sou eu, apenas eu.
Não fosse por mim, mil e uma delícias:
Desde antigas maravilhas egípcias
Ao siroco do extremo-árido seu.

Mas o deserto sempre pareceu
A mim, vazio e inóspito... Fictícias
Soavam suas histórias e primícias,
Que nada me farão senão sandeu!

Outros conseguirão achar, decerto,
Seus oásis, com bons mapas e astrolábios,
Para se atravessar todo o deserto.

Eu, porém, fracassei onde os mais sábios
Desistiram... E, secos os meus lábios,
Vejo o deserto ainda mais deserto.

* * *

III

Tombo exausto nas dunas. Tão fundo!...
Vejo as minhas pegadas sobre a areia
E observo quão estranho cambaleia
O andar de quem às costas traz o mundo.

Quedo à beira da estrada, longe oriundo,
C'o corpo e mente entregues ao que anseia
O coração. Porém, em vão semeia
D'amor todo o deserto, que infecundo.

E louco, como um deus, carreguei vidas.
Foi o amor que, apesar das despedidas,
Trouxe-me a este deserto de areia e pó.

E, se outras pegadas seguem logo em frente,
O andarilho há-de tombar, imprevidente,
Diante da condição de ser, tão-só...

* * *

IV

Há anos eu registro a mim memórias
D'estas incursões p'lo deserto infindo.
São escritos dispersos que eu, reunindo,
Fizera não História, mas histórias.

Sim, busquei reviver as antigas glórias
Do viajante ao deserto então bem-vindo,
Que descrevera o terrível como lindo,
Deixando várias notas ilusórias.

Escrevo ora na areia. O mar apaga...
De costas ao deserto, miro o oceano
E deixo para trás só dor e engano.

Porém, erijo aqui um padrão de pedra
Cujo eco faz o mar a cada vaga:
-- "N'esse deserto nada jamais medra!..."

* * *

V

"Espírito, onde é tua mãe?" -- " 'Stá morta."
"Mas onde está teu pai?" -- "Vive na rua."
"Enfim, quem te governa?" -- "Só a lua."
"A ninguém tu amaste ou nunca?"-- "E importa?..."

"Que queres tu de mim, pois?" -- "Abre a porta!"
"Por quê? Volta p'ra casa!" -- "Quero a tua!"
"Não te era o coração vão?" -- "Continua."
"Por que ‘inda enganas?" -- "Tão-só me conforta..."

Nada mais disse ess'alma do deserto.
Eu acordei e vi as mesmas dunas,
Que a todo o vale haviam recoberto.

E as desoladas vilas e comunas,
Que tenho ora encontrado no caminho,
Apenas dizem mudas: "Vais sozinho..."

* * *

VI

O deserto, perigos e belezas,
Promete para quem o atravessar.
Todavia, hoje à beira d'esse mar
Vejo que tais promessas são vilezas.

Nada é o que parece: As incertezas
Me acompanharam logo ao começar.
E tudo que tenho ainda p'ra contar
Já não são bem saudades, sim tristezas...

O deserto, até o homem obstinado
Dobra sob a implacável aridez
E o faz tombar, por fim, extenuado.

Vindo à beira do mar uma outra vez,
Retorno assim ao início do passado,
Deixando ora o deserto ao incauto inglês.

* * *

VII

Frias são estas noites no deserto,
Envolvidas que estão p'lo mistério.
N'elas, a lua c'os astros do sidéreo
E o crepitar d'uma fogueira por perto.

A solidão mantêm sempre desperto
Àquele que vigília insone e sério.
Repousa n'uma paz de cemitério
Sem qualquer companhia ao sonho incerto:

Odaliscas e véus?! Pura ilusão...
Estas são reservadas para o sultão
E se abrasam em vão com vãos eunucos.

E os dias viram noites ao relento,
Repletas da miragem e do vento,
Que deixam os viajantes sós malucos.


VIII

É tempestuosa a fúria, grande o dano
Do Esp'rito do Deserto que se eleva
Dos abismos da mais profunda treva
E atravessa o mar com areia e engano.

O siroco, que resseca ao sol romano,
Também pelos confins da Terra leva
A aridez do deserto e a dor longeva
De quem lhe enfrenta o mal ano após ano.

Com que hei-de comparar os fortes ventos,
Senão co'a mulher, cujos maus momentos
Constrangem p'las ofensas sem limites?...

Sua ira não se aplaca sequer diante
Do amor mais puro e raro do expectante,
Que espera, vê e sofre nunca quites.

* * *

IX

--"Eu, mulher do deserto, sou quem anda
Por abismos e dunas em jornada
Infinda, n'essa terra desolada,
Que é minha vida sórdida e nefanda."

"Na Torah, nos terreiros sãos de Umbanda
Sou a entidade e força que, esfaimada,
Devora homens e os lança para o nada,
Vagando alhures com loucura branda..."

"Não os mato, tão-só os esvazio.
Tiro-lhes toda a fé, esp'rança e amor
E deixo-os quando não têm mais valor."

"À noite, eu me transformo em vento frio.
Roubo-lhes sono e sonhos p'ra que, sós,
Amem eternamente à sua algoz!"

* * *

X

Creio, só e finalmente, na verdade.
É ela, e somente ela, quem liberta.
E após anos errando p'la deserta
Imensidão, eu deixo a insanidade!

Basta de buscar o oásis onde evade
O poeta-e-viajante ante a descoberta
Das tais lagunas verdes na área incerta
Entre a imaginação e a vanidade...

Fugia dos conselhos dos mais sábios,
Por crer em mentirosos e vãos lábios,
Que vivem omitindo e até mentindo.

Cedo ou tarde o deserto se revela,
Porém, em toda a sua árida e bela
Insensatez, como um caminho infindo.

Ilhéus - 12 a 23 06 2011


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


Série com 10 sonetos obsessivos.
 
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RicardoC
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Enviado por Tópico
Álvaro
Publicado: 25/05/2015 12:33  Atualizado: 25/05/2015 12:33
Da casa!
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 Re: SAARA
Linda coletânea Ricardo, foi realmente um prazer ler! Parabéns!