Poemas : 

Ants

 
Hoje estou cansado
Dói-me o corpo da realidade compressora sobre a carne
E dói-me a cabeça com o peso destes pensamentos sólidos.
Estou cansado
Não pelo que fiz hoje
Mas pelo que tenho agendado para fazer amanhã.

Se soubesse que ia morrer esta noite
Decerto andaria folgado e leve
Por não ter o que fazer amanhã.
O que me cansa são os dias programados
A repetição no pensamento, antes da repetição dos dias
E cansa-me mais a certeza de pensar nisto
Do que tudo o que tenho para fazer e sei que não farei
E esta certeza magoa-me o corpo como culpa de faltar com a vida.

Quisera o destino que fosse humano
E que tivesse pensamentos sólidos
Sobre qualquer coisa que cheira a céu e a divino
Quando deveria ser formiga, feliz por não pensar repetições
E por andar sempre junto à terra.

Ando farto de ser deus do meu destino por cumprir.

Hoje estou cansado da realidade de não ser formiga.
Estou sentado numa cadeira a ver formigas
A passarem encarreiradas na labuta automática de não pensarem amanhã
Nem no segundo seguinte, nem na morte a consumir-lhes o tempo.

Estou sentado na cadeira que me persegue para onde eu for
E cansado de fugir dela
Cansado de ser eu e ter pensamentos sólidos
Agarrado à vida e a coisas vagas como amanhãs com cheiro de morte.
Cansado
De ver formigas.


Viver é sair para a rua de manhã, aprender a amar e à noite voltar para casa.

 
Autor
silva.d.c
Autor
 
Texto
Data
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1882
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 08/04/2021 10:48  Atualizado: 08/04/2021 10:48
 Re: Ants
E eu não me canso de ler este. Está lá tudo: as formigas, os pensamentos sólidos, a cadeira, as coisas vagas, o destino por cumprir, o cheiro a morte.
Obrigada, Nuno Silva.
Abraço:)