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A Velha Senhora (completo)

 
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A velha senhora

Acabara o curso naquele ano. Novata no ofício, de diploma recém-timbrado e nota distinta, meteu os «canhenhos» na maleta castanha, arranjou meia dúzia de fatos decentes e esperou impacientemente o alvará de colocação. Não lhe saíra, sinceramente, a sorte grande, mas, de qualquer modo, já era professora. A sua cabeça era um balão de sonhos e a sua alma, tonta de otimismo, estoirava de orgulho. Pudera! A provinciana tímida, a mocinha apagada tinha-se polido pelas carteiras do liceu aos poucos e saíra do Magistério, de saltos altos e penteados esquisitos. Estreitara e encurtara as saias e, no estágio, aquela senhoria com que a tratavam era a afirmação oficial da sua emancipação. Tinham-se acabado as críticas, os métodos e contra métodos, os mandatos, etc... Os familiares não a tratavam já como criança e os vizinhos baixavam-lhe respeitosamente a cabeça... Viva a Senhora Professora!
Que vontade de ensinar bem! De brilhar! Uma escola muito pintadinha, uns meninos muito educadinhos, tudo limpo, muito arrumado, muito bem... principalmente, tudo muito moderno. Nada de pieguices. Ela era uma professora moderna, feita para ensinar crianças modernas...
Com a maleta castanha cheia de teoria, com a maleta verde composta de fatos decentes e a cabeça a estoirar de sonhos e otimismo, embarcou, naquela tarde de setembro, na camioneta das seis, com um bilhete na mão, em demanda dessa terra onde fora colocada como professora.
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A tarde estava húmida e sentia os pés frios. A Idalina tinha já espevitado o lume duas ou três vezes, mas a lenha talvez estivesse verde, porque aumentara o fumo e diminuíra a chama. Achou feios e disformes os pés metidos naquelas pantufas cinzentas e demasiado negro o chão da cozinha. Apetecia-lhe sair dali, caminhar ao acaso pelos campos, dar pontapés em vidraças e fazer rebolar calhaus pelas encostas. Estava positivamente nervosa, enfastiada, desfeita em amargura! Que vida! Fugir... Fugir da vida, da escola, de tudo... Um diabinho fazia-lhe negaças no fundo de si mesma: «Ora, então que tal? Chove na escola, não é ? E aquelas caras sujas! ... Pobre pequena! Tão inteligente! Tão nova! Tão aproveitável! Onde vieste cair... Não vale a pena maçares-te muito... São uns broncos! ... E os fatos novos que trouxeste na mala... Não vale a pena estar preocupada com eles... Aqui ninguém repara nisso. E os sapatos? Ora, experimenta levá-los à escola... Que bom?! Vinhas descalça, não? Estás a ver para que um pai cria uma filha?»
Ouvia este diabinho e dava-lhe razão. Ele tinha razão... Ela tinha razão... Mas, oh, Deus, a quem contar toda esta razão?
A voz da Idalina despertou-a:
- Menina, venha comer...
- Comer? Não quero nada.
A Idalina era boa mulher. Viúva, com um filho no Brasil, vivia da terra e para a terra. Semeava e colhia. Fora a primeira pessoa que conhecera, quando chegara à aldeia meses antes. Fora ela que lhe levara a bagagem e por ela soubera tudo o que havia de bom e de mau naquela terra, naquela escola... A Idalina era bisbilhoteira e o seu silêncio divertia-a. E divertida, pensando diverti-la, contava-lhe os acontecimentos que se passavam lá fora... Porque ela, a professora de alma aberta, tinha-se fechado toda ao encontrar-se com tantas crianças sujas, com uma escola velha, com uma terra que lhe parecera hostil, com uma gente que não era moderna...
Esta menina mulher que não encontrara na aldeia a pousada sonhada, a escola pintada de branco, os meninos limpinhos e educadinhos, vertera duas lágrimas de desilusão, cruzara os braços de desapontamento, nunca chegara a abrir os «canhenhos» da maleta castanha, nem a vestir os fatos decentes da maleta verde... Chegara, vira e... quisera fugir! Mandava dizer aos pais que tudo ia bem... Mas escrevia, depois, duas ou três cartas que rasgava vagarosamente em pedacinhos simétricos e punha a esvoaçar no regato do pátio... Eram cartas cheias de fúria, de desespero, de revolta. Umas para os pais, outras para os colegas, outras... para si própria. Rasgava-as, mas o diabinho continuava lá dentro dizendo e fazendo negaças...
A Idalina voltou à carga:
- Então, não quer comer?! Pois eu vou comer um bocadinho... Vou comer e, depois vou-me à camioneta esperar uma senhora que vem esta tarde. Vem por uns dias, para descanso.
Sorriu-se de ironia. Para descanso! Para descanso numa terra sem eletricidade, sem meios de transporte modernos, sem conforto, sem essas coisas maravilhosas que a cidade tem! Para descanso!
E a Idalina continuou:
- Vem para descanso. Todos os anos a encontro na Feira de S. Miguel. Conhecia-a na feira das cebolas, e ela fez-me muitas perguntas sobre as gentes destes sítios. Parece-me que queria mandar isso para o jornal. Até que eu este ano disse-lhe que a minha casa era casa de pobre, mas, se quisesse vir cá passar uns dias, que tinha muito gosto nisso. E vai daí ela aceitou logo. E aqui está a boa da Idalina para receber... E a menina vai-se deixar dessas tristezas em que anda (aqui para nós a menina deve ter um grande desgosto que qualquer dia vou descobrir...) e vai ter companhia. Comem as duas, conversam as duas e até pode ser que ela dê com a menina uns passeiinhos até à escola... Até à escola -pensava ela. Só se fosse para a substituir... De bom grado!
Quando a Idalina saiu, ela deixou-se ficar a meditar em senhoras que compram cebolas, em Idalinas hospitaleiras, e em dias de descanso e aldeias tão velhas como os Incas...
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Decididamente, aquele dia era mais um dia «não». Ela chamava «não» àqueles dias em que tudo lhe parecia correr mal... Tinha dormido pouco. porque o temporal toda a noite fizera bater portas e janelas, e a casa da Idalina não era nenhuma fortaleza. Deitada de olhos abertos na cama estreita e dura, pensava com angústia no abatimento em que se deixara afundar... Na tarde do dia anterior, quando vira chegar aquela senhora miudinha, de cabeça branca, olhos gaiatos e sorriso afável, vestida com gosto e penteada com esmero, sentira vergonha de si mesma. Onde estava aquela preocupação diária de parecer bem a colegas e professoras? Onde estava aquele brio de se mostrar uma rapariga educada, simpática e acessível? A velha senhora mantivera uma conversa amena e conciliadora, mas ela soubera conservar o muro de separação. E a velha senhora, ainda que pouco exigente no trato, compreendera e aceitara o toque. Caminhava a pensar em tudo com calma ironia. Melhor assim. Mas eis a escola!
Abriu a porta e tudo lhe pareceu sombrio e árido. A humidade descia pelas paredes e a chuva caída de noite inundara as últimas filas das carteiras. Tinha que sentar as crianças três a três... Entraram atrás dela embiocadas, silenciosas, de olhos tristes e rostos friorentos. Leitura... operações... ditados... problemas. A vida de todos os dias. Sempre igual.
Não aguentaria mais. Ia escrever aos pais. Dir-lhes-ia: «Falhei. Quero mudar de profissão». Pedia a exoneração. Em casa, não. Não ficaria em casa. Ia concorrer aos Correios. Falar, ver rostos, atender pessoas diferentes, contactar... Não, não gostava disso. Tratar com gentes diferentes é difícil. Talvez um banco... Não, também não... é do género. Ah, mas arranjaria uma saída. Talvez o pai soubesse de uma colocação em fábrica ou empresa... Talvez. E, depois, talvez, sim, tudo seria bem diferente. Agora, era só arranjar coragem para enfrentar os pais, os amigos, e... esperar.
Foi de boa disposição que a Idalina a encontrou nessa tarde e foi pela última vez que ela recebeu a velha senhora com um sorriso amável e com ela ficou a conversar de coisas banais ao canto da lareira.
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Nessa noite, ela desabafou:
- «Vou-me embora... Vou deixar a escola. Não posso mais. Tudo tão sujo, tão mau, tão difícil... Não sou capaz de ensinar. Não era isto que eu esperava. Foi um erro. Nunca passarei de uma professora medíocre. Já não sei que métodos empregar. Vou-me embora».
Disse... Falou dos tempos do liceu, do magistério, nas amigas, na cidade, nos «canhenhos» da maleta verde, nas fatiotas decentes da maleta castanha, nos seus sonhos, nas suas ambições que via enterrarem-se naquela aldeia hostil e perdida.
A senhora escutava-a com os olhos nimbados de ternura, e quando a viu esgotada de tanto falar, de tanto maldizer, a voz saiu-lhe calma no silêncio escuro da cozinha:
-Minha filha, escute-me. Conhecemos-nos há dias, mas os meus cabelos brancos deram-me a sabedoria do conhecimento humano. Há no meio de tudo isso uma falha, uma brecha enorme que terá de ser tapada e isso depende de si. Não, não diga nada. Deixe-me falar. A menina não irá. Tenho-a observado e vejo que não lhe faltam as qualidades necessárias para ficar e triunfar. Ouça, só lhe falta uma coisa... A coisa mais maravilhosa do mundo: AMOR. Ama a sua profissão?
- Eu... eu pensava que sim... Eu gostava...
- Mas... Menina, não é difícil amar as coisas belas e fáceis. Não é difícil ser professora na cidade, ensinar crianças mais ou menos bem alimentadas e agasalhadas, contactar com gente culta e educada. Em tudo que se gosta de fazer, e que se faz porque é bom fazer-se, não há Amor; há prazer e conforto. A profissão que escolheu exige, acima de tudo, Amor. Amor para aceitar escolas velhas e crianças sujas. Amor, para ensinar, educar, construir, preservar. Amor para receber críticas e desenganos, ingratidões e incompreensão. Amor, para viver tudo isso e continuar de braços abertos e rosto prazenteiro. Enquanto não começar por melhorar o ambiente, as suas pequenas não serão melhores. A menina mesmo. Na professora, deve haver oitenta por cento de missionária e vinte por cento de funcionária. A professora que ensina sem amar é como o artista que trabalha a pedra sem inspiração. E, onde não há Amor, não há professoras tristes, velhas e apagadas; e alunas medíocres, tímidas e ignorantes.
- Mas...
- Não, não diga «mas». Deixe-me ajudá-la, tirá-la desse inconformismo que só faz de si um ser amargurado e inútil. Se caíram por terra todos esses sonhos, não são os outros que vão erguê-los. É a menina. E deve começar já... Abra a maleta verde e tire dela essa teoria que aprendeu; abra a maleta castanha e use esses fatos decentes. Tente viver aqui a vida de todos os dias que vivia na cidade entre a sua gente, e prepare as suas lições como se fosse ainda estagiária e as suas pequeninas alunas lhe fossem fazer uma crítica. Erga-se de manhã com o propósito firme de ir viver um dia «sim». Os seus meninos vão apreciar os seus fatos decentes, os seus sapatos citadinos, o seu sorriso de menina moderna, as suas falas de pessoa educada. Sorria, fale, seja camarada e, se eles não sabem rir, ensine-os a rir. Ensine-os a rir antes que eles descubram que a professora só sabe chorar. Tente tudo isto, viva isto, sinta isto e prepare-se para a sua missão. Depois, se não obtiver nada de positivo, depois venha dizer-me: «Vou-me embora».
- As suas palavras espantam-me!... A Senhora... A Senhora pensa de uma maneira... A Senhora sabe o que é encontrar, logo no primeiro ano de trabalho, uma terra e uma escola assim? Eu que estava habituada...
- Ah? Deixe-me rir... deixe-me pedir-lhe desculpa... Falei, falei muito, mas não disse o principal. Sabe porque vim aqui? Sabe quem sou? Sabe porque estou aqui? Eu já estive aqui há muitos anos, muitos anos. Fui a primeira professora que lecionou nesta terra. Sim, não me olhe com esse espanto. Estive aqui tal como a menina, vinda da cidade. Não me venha dizer que eram outros tempos. Os tempos e os factos repetem-se mais ou menos do mesmo modo. Ah, que eu também sofri! Mas foi só na primeira semana. Estive cá dez anos. Os pequenos que ensinei são agora homens de idade madura. Sessenta e sete anos de idade é uma vida quando se passam quarenta e sete a ensinar. Casei-me, fui para longe e agora estou viúva, sem filhos, só. Chegou finalmente o momento de repousar. Sabe, agora, porque escolhi esta terra para passar uns dias... Estes dias vão ser o regresso ao passado, à idade dos vinte anos em que comecei a trabalhar. Já ninguém me conhece aqui, e eu não direi quem sou. Se lhes dissesse, a todos esses que são agora homens e mulheres de trabalho, seria para lhes fazer sentir que foram eles que fizeram da menina da cidade, irresponsável e egoísta, a professora consciente e amorável que fui então... e até hoje. Compreende, agora, as minhas falas de há pouco?
Sentia na garganta um nó. Não, chorar não. Dominou-se.
As palavras saíram-lhe de entre os lábios, com esforço:
- Ficarei.
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«No coração da escola, a professora havia semeado um grão chamado Amor. Do pequenino grão brotou uma planta e a planta cresceu, tornou-se frondosa e deu fruto a seu tempo. E todas as crianças que brincaram e estudaram à sombra dessa árvore e mitigaram a sede nos seus frutos cresceram e foram homens bons».
Já não havia dentro dela o tal diabinho a fazer negaças. Havia a canção da Esperança, que todas as manhãs ela escutava ao transpor o umbral da escola. E a canção começava assim:
«No coração da escola...»
Onde estava a menina mulher revoltada, cética, desiludida? Ao vê-la, a velha senhora perguntava a si mesma se não fora um milagre. A estadia prolongara-se; e até quando? A nova professora já não precisa de conselhos e ajuda, mas a velha senhora precisa de estar ali, muito, muito tempo a reviver, a ser de novo moça, a receber dos pequeninos algo que havia dado aos grandes, no tempo em que eles eram ainda pequeninos. Mas houve um dia em que ela teve de partir. A professora nova ficou. Ficou muitos anos. E da escola velha fez-se uma escola branquinha, frequentada por meninos limpos, de aspeto cuidado. E os caminhos para ela foram menos agrestes e a casa da Idalina pareceu mais confortável. As férias eram desejadas, mas as aulas eram esperadas com alegria. Se ela tivesse partido... Se ela tivesse fugido, teria falhado, e a vida seria um balão vazio. Agora, a vida era cheia e ela era a menina mulher que vinha à cidade encher-se de coisas belas para as levar aos pequeninos que apreciavam tanto essas coisas diferentes. Ela tinha encontrado o caminho, e a brecha da vida fora ocupada. Ela tinha recebido das mãos da velha senhora a chave do problema: Amar o trabalho, trabalhando com Amor. E nesse trabalho, encontrava motivos para bendizer a Vida!



FIM
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973, p. 213-219.
Data da conclusão da edição no blogue 8/10/2015.

http://mariahelenaamaro.blogspot.pt/p/contos-em-edicao.html

http://www.slideshare.net/tosequeira/a-velha-senhora
 
Autor
amacsequeira
 
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