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Carpe Noctem

 
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Carpe Noctem

PODE SE DIZER QUE ESTAVA CALOR NAQUELE DIA, a brisa tocando o rosto, como se Deus estivesse dizendo: "Estou aqui meu filho". Havia um balanço, parecido com aquele que costumava brincar na casa da minha avó, nas férias do papai quando ele ainda era vivo.
Lá estava o homem. Sentado, balançando levemente, queria voar, abria os braços entre as cordas, voava sobre os campos, sobre o rio Sena, sentia um frio quando passava pelos Urais do Norte e uma sensação de conforto quando voava sobre a extensão azul, o olho azul do universo, imensidão do mar, sobrevoava as nuvens, rebaixava além do mediterrâneo e sempre queria mais. Desde criança, quando na grama deitava e perdia boa parte do meu tempo tentando arrumar alguma explicação para o vôo dos pássaros e como seria se sentir livre como eles alguma vez na vida, realmente livre.
Aproximei-me do homem no balanço, ele me parecia familiar, por algum motivo, cada vez que me aproximava do balanço e do homem, também me aproximava de mim mesmo, como se fosse ele, um espelho, me reconhecia nele.
-Veja como se esgueira a videira, consegue ver?- disse o homem.
Neste momento o vento ficou mais intenso. - A torrente, essa mesma que ceifa a videira prematuramente é a mesma que semeia o arado. - continuou.
Percebi um tom familiar em sua voz, não olhava em meus olhos, mas estávamos conectados, de certa forma, tudo aquilo nos conectava. O balanço; a relva e a ravina logo acima, o calor e a brisa, sobretudo a forma como aquele homem falava.
-Posso lhe fazer uma pergunta?- ousei, com muito receio.
-A resposta é: você não poderia ter feito nada a respeito - me surpreendendo disse, e continuou - Nós, em nossa suprema arrogância, somos tão fracos. Dedicamos boa parte de nossa vida procurando entender a morte, mas ela é implacável. Dormimos e acordamos com ela todos os dias, o próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. - disse o homem.
Surpreso, me pus a pensar e tudo ficou mais confuso. Que lugar era aquele? Que homem era aquele?
De forma repentina ele tornou a falar, desta vez não estava distante. Já o via e pude finalmente olhar em seus olhos.
-Não existe nada de completamente errado no mundo, mesmo um relógio parado, consegue estar certo duas vezes por dia. - afirmou.
Acabei por decifrar aquele momento: tudo o que chega, chega sempre por alguma razão. A vida não dá coisa alguma sem retribuição e sobre cada coisa concedida pelo destino, há secretamente um preço, que cedo ou tarde deverá ser pago, mas mesmo que não mereçamos novos verões, ao menos estejamos prontos caso ocorra.
E estava pronto.
Um nevoeiro se aproximou, a confusão na minha mente aumentava e um zumbido forte no ouvido direito me desnorteava.
-Trouxe seu doce preferido- disse ele estendendo a mão.
E ele me conhecia bem. Papai tinha o costume de trazer meu "splite" todos os dias, talvez uma tentativa de compensar sua ausência devido ao trabalho penoso na lavoura. Aquelas jujubas coloridas não me alegravam tanto quanto sentir aquele cheiro de terra molhada do seu casaco quando me abraçava.
E o tempo parou no momento em que comi o doce.
Não havia mais a relva nem ravina, apenas terra batida. O balanço, agora uma tenda de lona com uma estampa da cruz vermelha. A voz serena do homem dera lugar ao pranto dos enfermos. O calor e a brisa jaziam sobre o âmbito úmido e insalubre.
Tentei alcançar minhas pernas com as mãos, mas nada pude sentir além do lençol áspero.
-Onde estou?- perguntei sem saber para quem. -O que aconteceu?- insisti.
-Senhor, bem vindo de volta. Considere-se premiado. - afirmou a enfermeira.
-O que acont...- me interrompeu o soldado da maca ao lado - O senhor e sua unidade estavam em missão no fronte, voando aos arredores de Omaha, os alemães com aqueles tijolos voadores f-86 e B-101 chegaram com tudo. Artilharia pesada senhor, abateram quatro dos nossos. Malditos Luftas! Sinto muito. - exclamou, dando um soco na mão em sinal de culpa.
-Senhor, agora precisa repousar. - disse a enfermeira administrando algum tipo de anestesia.
- Mas eles ainda estão lá, tenho... voltar, Por fav.....



França. 4 de junho de 1944


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edu_augusto
 
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