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No fim do mundo

 
Abriu os olhos com a claridade. Naquele fim do mundo amanhecia cedo demais. Sim, ainda estava naquele quarto de hotel a tantas horas da sua cama confortável.
Não perdeu tempo, levantou-se e começou a sua rotina matinal. Acordava sempre com fome. E, ali, o pequeno-almoço ainda era a refeição que lhe inspirava mais confiança.
Dirigiu-se à sala onde muitas pessoas já ocupavam as mesas e comiam. Havia gente de todas as cores, mas a sua não era a predominante. Procurou com o olhar uma mesa e pousou-o nuns olhos muito azúis que a fitavam, sorrindo. Incrédula, percorreu apressadamente os poucos metros que os separavam. Olharam-se a sorrir. Ambos, não acreditando que estavam frente a frente onde seria improvável, quase impossível, encontrarem-se. Ironias da vida. Beijaram-se na face, como velhos amigos que eram.
Eram tantas as perguntas que quase não dava tempo para serem respondidas. Olhavam-se com os mesmos olhares de sempre. Os mesmos sorrisos abertos e francos, a mesma confiança…
Há quantos anos não se viam? Não sabiam ao certo, mas voltaram à primeira aula, do primeiro dia, do primeiro ano da faculdade. Ao momento em que ele a abordou inventando uma desculpa esfarrapada, sem qualquer tipo de vergonha. Ela, confiante e de resposta sempre pronta, disse o que ele não queria ouvir… todos em volta se riram. E o despique foi continuando ao longo dos dias, dos meses e até dos anos. Ele, o mais atrevido e atiradiço. Ela, uma das mais pretendidas. Eram jovens e muito engraçados. Todos pensavam que dali nasceria algo muito mais do que atração e amizade. Enganaram-se. Ela começou a namorar com alguém de outro curso. Ele nunca deixou de andar por perto… e, quando recebeu o convite para o casamento, recusou. Encontraram-se ao longo da vida em eventos pontuais e com pouco tempo para conversarem. Acompanharam, à distância, a vida um do outro. Mas a alegria de se olharem novamente, sempre foi uma constante.
Agora, estavam a tomar o pequeno-almoço juntos, no fim do mundo. E ele via-a a comer as frutas com a mesma vontade, o mesmo prazer com que comia gelados nos intervalos das aulas, no café da frente. Ela via-o a observá-la com a mesma atenção de sempre. E sorriam…
Não deram por o motorista dela se aproximar. Estava na hora de ir trabalhar. Viu-a sair apressada, dando-lhe “até logo”, tão usual noutros tempos. Nem sequer lhe deu tempo para combinar alguma coisa. Olhou-a, já de costas, no seu vestido vermelho. Levava na mão o blazer branco e a inseparável pasta do portátil. Sorriu ao vê-la desaparecer do seu alcance.
Não a viu ao jantar. Pensou-a “perdida pela cidade” em algum jantar de trabalho. Esperou-a no bar. Já era tarde quando foi para o quarto. Ela ainda não tinha voltado. Gostava de ter jantado com ela ou de ter bebido “um copo” no bar. Conhecia bem a personalidade desta mulher. Sabia que não desmarcaria outros compromissos para voltar mais cedo ao hotel, para estar com ele. Adormeceu pensando no pequeno-almoço do dia seguinte.
E lá vinha ela entrando na sala, procurando-o com o olhar. Dirigiu-se a ele e sentou-se. Comeu como sempre. Falou como sempre. E disse-lhe que partia nesse dia. Voltava para casa nessa noite. Sentiu-se desiludido. Queria estar mais algum tempo na sua companhia. Mas o ritual foi o mesmo do dia anterior. Tinha mudado o vestido e o blazer…
Quando, ao final do dia, voltou ao hotel, encontrou-a sentada no balcão do bar. Já sem vestido e sem blazer. De jeans e com uma blusa leve. Como nos tempos da faculdade…
Chegou ao pé dela e colocou o braço na sua cintura. Ela sorriu-lhe e deu-lhe um beijo na face. Iria escapar novamente, como fez durante a vida, pensou. Perguntou-lhe a que horas era o voo. Faltava uma hora para ir para o aeroporto.
Manteve o braço na sua cintura. Os seus cabelos tinham um perfume que sempre o seduziu. Química. Beijou-os. Ela não estranhou. Sorriu. Olharam-se. Ele mergulhou no brilho castanho dos seus olhos. Ela mergulhou num azul inebriante. Não foram precisas palavras.
Numa hora viveram anos de fantasia. Sem preconceitos nem promessas. Sem amanhã nem depois. Magia pura. Descoberta do “ouro da alquimia”.
Chegou só cinco minutos atrasada ao aeroporto. Dentro de algumas horas estaria em casa. E tudo estaria no seu lugar habitual. O sonho… esse tinha ficado naquele fim do mundo.
Em que outro fim do mundo, se voltariam a encontrar?

 
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MariaSousa
 
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Enviado por Tópico
kripy
Publicado: 17/07/2016 23:55  Atualizado: 17/07/2016 23:55
Membro de honra
Usuário desde: 26/05/2010
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 Re: No fim do mundo
Olá MariaSousa li seu conto e confesso que fiquei "colado" nele.Muito bom mesmo,mil beijos 💋 de carinho,kripy.


Enviado por Tópico
KaiiqueNascimentto
Publicado: 18/07/2016 02:03  Atualizado: 18/07/2016 02:03
Da casa!
Usuário desde: 23/09/2014
Localidade: Francisco Morato - SP
Mensagens: 285
 Re: No fim do mundo
uma bela historia, porem estava torcendo para um final mais feliz, as vezes se calamos e deixamos algo importante partir, por não ter a coragem de falar oque sentimos, não sabemos expressar isso de uma forma clara e convincente, acho que merecia outro final, emfim . Uma bela historia adorei .


Enviado por Tópico
Nininha
Publicado: 18/07/2016 10:59  Atualizado: 18/07/2016 10:59
Membro de honra
Usuário desde: 14/04/2016
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 Re: No fim do mundo P/ MariaSousa
Olá MariaSousa;
Mas que história tão bonita e bem contada!
Não consegui parar até chegar ao fim...rsrs
Muito obrigada pela partilha bonita e favorita!
Beijinhos


Enviado por Tópico
MaryFioratti
Publicado: 18/07/2016 12:41  Atualizado: 18/07/2016 12:41
Membro de honra
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 Re: No fim do mundo
Olha, sou extremamente apaixonada por encontros passados. Sejam eles de amigos/ ex-namorados, ou pessoas que fizeram parte importante de nossa vida. Porque somos como uma historia, rabiscada numa folha, onde sensacoes, momentos, estao todos ali vivos. Nao importa se eramos adolescentes, ou que idade tinhamos. O que importa eh o sentimento que ficou.
Adorei sua historia! Prendeu-me do comeco ao fim.

Abracos!

*Mary Fioratti*


Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 19/07/2016 14:13  Atualizado: 19/07/2016 14:13
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Mensagens: 10200
 Re: No fim do mundo
Bom dia Maria Sousa, a vida humana é feita de encontros desencontros e reencontros, e os teus versos dissecam estas premissas com muita clareza, parabéns pelo eloquente poema, um abraço, MJ.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/07/2016 14:27  Atualizado: 19/07/2016 14:27
 Re: No fim do mundo
*Ah Poeta Maria...a prosa te pertence também.
Vivi esse sonho real por uns minutos tal a riqueza emocional e descritiva que passas.
E tinha que ter uns olhos azuis...hem? Hehe
O azul nos acompanha.
Tão bom ler...muito bom!
Beijoka*