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Além das nevoas Azuis III - Conversando com mestre Jaqueira

 
CAPITULO III
CONVERSANDO COM MESTRE JAQUEIRA

Depois de poucas conversas e de fazer as compras, Seu Lairo voltou pra a pequena biana do Compadre Jaqueira, que o esperava ansiosamente na borda da embarcação, perto do fogareiro de lata de Querosene Jacaré, onde preparava o almoço. No panelão encardido pelas fumaças, cozinhava o cozidão de ,cinco quilos de cangulo. Sobre a tampa do porão dois pratos de estanho branco, as colheres e cinco quilos de farinha de mandioca.
- Oló, compadre! Saudou Seu Lairo ao aproximar-se do barco ensecado no igarapé de lama verde, próximo a entrada do furo. Compadre Jaqueira levantou-se, o sol a pino, obrigando-o a acurar a vista para poder enxergar melhor o vulto. O rosto enrugado contorcia-se em varias caretas e colocou a mão na testa:
- Ora, se não é o Compadre Lairo – balançou a cabeça em sinal de satisfação e contestação. A preocupação desnuviara-se.
Seu Lairo subiu forçosamente a bordo, indo direto para debaixo da empanada de lona. Compadre Jaqueira com sua costa avermelhada e franzida em pequenos sulcos, de cabelos brancos, tirou o panelão do fogareiro e colocou-o sobre a tampa do porão.
- Eta, calor danado! – Exclamou Compadre Jaqueira enfiando o cabo da colher de madeira na alça do panelão e trazendo-o para a tosca mesa. – Nem um ventinho, somente esse mormaço, não sabe se poderemos....- a panela fumegante sobre a improvisada mesa, os olhares convergentes ao borbulhar efervescente do caldo amarelo que pacientemente o Mestre Jaqueira despejava suavemente sobre os pratos.... – ir hoje a noite. Seu Lairo embicava a colher na panela, Compadre Jaqueira jogava a farinha sobre o caldo borbulhante e vaporento... – A maré vai encher as nove, desceremos na vazante... – conclui o Mestre, antes de provar o pirão.
Seu Lairo enxugou o rosto ensebado num encardido lenço que trazia no bolso da camisa azul, sentou-se mais perto da tampa. O panelão borbulhava e o odor gostoso do cozido inebriava o Compadre Jaqueira que posicionou-se melhor diante de Seu Lairo:
- E as compras?
- Despachei na Tesouraria Real e no finalzinho da tarde, os estivadores reais farão o embarque. – Disse Seu Lairo e na sua colher um enorme pedaço do rabo do cangulo – Compadre não tá aqui nessa hora?
- Mas claro que sim, por que pergunta?
Seu Lairo aproximou o prato de estanho branco ao panelão e com jeito começou a enchê-lo com o caldo forte e amarelo. Recolocando-o na tampa, apanhou o saco de farinha e a jogou sobre o caldo. Compadre Jaqueira fez o mesmo ritual. Num terceiro prato colocou somente o caldo e espremeu três pimentas malaquetas que exalaram o doce néctar dos odores ardorosos. Com a mesma colher de pau e com muita habilidade pescou dois enormes pedaços do peixe e os deixou na borda de seu parto
- O senhor comprou muito? – Perguntou-lhe com a boca cheia de pirão e um pedaço inteiro do peixe.
- O de sempre – Respondeu Seu Lairo cabisbaixo e concentrado puxando uma espinha.
O resto do almoço transcorreu em silencio. Pela maneira macambúzia de seu parceiro, Cumpadre Jaqueira percebeu que o mesmo não estava pra muita conversa e isso o preocupava. Conheciam-se há muito tempo, desde quando moravam por trás das névoas azuis e o Seu Lairo tinha uma bodega típica na Praia do Desterro e vivia com Dona Chixinha. E era popularmente conhecido de “Meu Botijão”. E ele depois de perambular de porto em porto acabou encalhando no mesmo bairro. Sendo recolhido por Seu Lairo que o nomeara o cozinheiro-chefe do pequeno frege , onde o menu diário era sempre o mesmo: peixe frito e cozido. Conviveram e beberam muitas cachaças que varavam as madrugadas e raramente terminava (como no dia que quebrara a cabeça de Chixinha, após ela reclamar de suas desenfreadas bebedeiras). Foi nessa época que outro notório habitué começou a freqüentar o ambiente atípico de “Meu Botijão”, na condição de alcoólatra. Findo o lauto banquete, Seu Lairo retirou-se para a popa, depois de lavar os seus utensílios e guardá-los na caixa. Mestre Jaqueira lavou os seus também e colocou-os no mesmo lugar perto das de Seu Lairo., para depois bota-la no castelo de proa. Sentaram-se nas bordas. Seu Lairo estirou-se sobre o Taboado, abriu a camisa, colocou o chapéu sobre o magro peito. Compadre Jaqueira enrolou um seu cigarro e o fumava tranquilamente perto do leme. Uns bandos de aves de todas as cores sobrevoaram o furo, indo pras bandas do Caratateuas. Um leva brisa aflorou-lhe a mente:
- Compadre, o senhor se lembra de Seu Dico? Indagou Seu Lairo, erguendo a cabeça na direção do mestre. que soltava fumaça pelas narinas.
- Claro que sim. Como posso esquecer-me daquele peste, que se congregou na igreja dos crentes e virou pastor, depois que aprontou muito. Tem um filho dele, aquele que morreu na zona com uma facada nos rins, para penitencia na Ilha de Cubas como carcereiro, por ordem do Nosso Verdadeiro. A ex-mulher é casada com o Prefeito de Pagoas, dizem que é muito rica. O senhor se lembra dela?
- Pra falar a verdade não, como sabes, era difícil eu sair de detrás do meu balcão e acho que ela nunca foi à minha humilde quitanda.
- Acho que sim – Assentiu Compadre dando uma cusparada na lama, depois de uma baforada e rememorar o ambiente peculiar da venda, com o balcão com os mostradores de plástico transparente, deixando a mostra os pratos de peixe-frito, onde sempre uma mosca teimava em pousar e outras guloseimas preparadas pelas mãos imaculadas da quituteira Dona Chixinha. O banheiro ao lado com um cartaz feito a mão: BANHO – UM CRUZEIRO’ – Os amontoados de mensabas e cofos cheios de camarões e peixes salpreso . Uns banquinhos para os fregueses e Seu Lairo sentadinho, atendendo-os mansuetudemente. – Compadre por que pergunta por ele?
- Estranho nos encontramos pela manhã na saída da Venda de Fessora Angélica... e ele..
- Fessora quem? – Indagou abruptamente Mestre Jaqueira com ar de espanto.
- Professora Angélica, aquela bonita mulher que tem um tiosque naquela praça, perto da Confeitaria Concebida Sem Pecado...
- Ah! Sim dizem que é muito bonita
- O compadre nunca a viu?
- Não, só ouço falar..- Retrucou coçando a rala barba branca.
- O senhor nunca foi lá?
- Nunca, não me é permitido desembarcar na sagrada Jeruz
- Por quê? Essa eu não sabia –
- Faz parte das minhas penitencias. E uma delas diz que nunca devo deixar a minha biana, enquanto eu estiver aqui.
- Mas por quê? – Insistiu Seu Lairo sentando-se de supetão.
- Deixa isso pra lá, depois lhe conto – Desconversou Compadre Jaqueira, levantando-se e caminhando para a proa, a chaleira emitia sinais de evaporação excessiva.


Extraido do livro homônimo do Clube de Autores (www.clubedeautores.com)

 
Autor
r.n.rodrigues
 
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