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A Menina de Aço

 
Com apenas 6 anos Matilde já arrumava a loiça do pequeno almoço e varria a cozinha antes de sair para a escola, muitas vezes ia descalça com umas folhas debaixo do braço, se lhe perguntassem se não tinha frio aos pés nas gélidas manhãs de Janeiro a menina respondia que não tivera tempo de se calçar como se essa fosse a sua única verdade. A sua mãe sofria de uma terrível doença que na aldeia era tida como uma possessão do demo, transtorno bipolar de personalidade, às vezes perseguia Matilde com vontade de a matar, obrigava até a menina a esconder-se dela e a dormir no campo ao relento, mas na aldeia todos sabiam que Dulce amava a sua filha mais do que a tudo nesta vida e só não a tratava melhor porque uma terrível força do mal a possuída ou a doença que mais tarde os exames médicos vieram a confirmar, desmentindo as certezas doentias daquelas gentes. O seu pai era um homem trabalhador, saía todos os dias às seis da manhã só para chegar depois das sete da noite, sentia, na maior parte das vezes, um medo terrível da sua esposa e embora céptico sempre se deixara levar pelas vozes das viúvas de negro e dos homens reformados da aldeia, cuja tradição de tão enraizada já não podia ser posta em causa, amava a sua única filha mas, no entanto, nunca havia tido coragem suficiente para enfrentar Dulce e impedi-la de bater na pobre Matilde, não passava por isso de um Joaquim.
A aldeia era pacata, uma aldeia parada no tempo, com muito pouco para viver e com outro tanto para fazer, as casas estavam tão longe umas das outras que os "vizinhos" mais próximos que Matilde tinha viviam a 500 metros da sua casa, a escola ficava no outro canto da vila e todos os dias de manhã e à noite Matilde fazia mais de 30 minutos a pé, os amigos eram poucos, Matilde nunca tinha tempo para brincar, tinha sempre os afazeres domésticos, os deveres da escola e outros hábitos que gostava de cultivar.
Um dia Matilde descobrira que na "Casa do Vale" vivia uma senhora da cidade, uma filha dos donos que tinha vindo cuidar da sua mãe que ficara acamada, então curiosa como era decidiu ir até lá, a senhora era muito simpática, deixou-a entrar ofereceu-lhe um pão com manteiga e ao ver Matilde tão fixada na sua estante de livros deixou que ela escolhesse um para levar, Matilde começou assim por ler um livro por semana até já não restarem mais livros que a senhora Adelaide lhe pudesse dar, Matilde guardava todos com muito carinho em caixotes, escondidos dos olhos de toda a gente, no meio do palheiro. A D.Adelaide começou então a mandar vir livros da cidade para Matilde, ali Matilde encontrara o seu melhor hábito mas também o mais viciante. Na "Casa do Vale" Matilde também se tinha acostumado a ouvir música clássica e a tocar viola, sabia tocar muitas canções dos tempos da desfolhada e da vindíma, tinha sido o marido da D.Adelaide que lhe ensinara, quando viviam na cidade ele tocava viola com os amigos num café. Ali Matilde aprendera a sentar-se direita à mesa, a colocar os talheres na mesa da devida forma, aprendeu a servir e foi isto que lhe deu as bases para, quando tinha apenas 8 anos, começar a servir à mesa no pequeno tasco lá da aldeia, ganhando dinheiro para sustentar a família quando a sua mãe caiu doente na cama.
Nunca tivera tempo para cultivar as amizades, achava que ninguém queria ser amigo de uma menina assim, até ao dia em que se apercebeu do quanto se sentia sozinha. Nesse dia a noite caira mais cedo, o tasco fechara mais tarde, a sua casa ficava a 50m de viagem a pé, o céu estrelado era a sua única companhia de viagem, enquanto caminhava apressadamente sentiu necessidade de conversar com alguém e criou o seu primeiro amigo, depois criou vários, diferentes personagens do seu dia-a-dia que a acompanhavam sempre, deu-lhes nomes e começou a escrever sobre eles numas folhas coloridas que a D.Adelaide lhe tinha oferecido.
Devagar Matilde começou a ficar mais magra, o trabalho era muito para uma simples criança, começou a comer pouco, a dormir menos, a sentir-se cada vez mais só, tanto que começou a não aparecer na "Casa do Vale". D.Adelaide de dia para dia sentia, cada vez mais, a falta da menina, gostava de a ver entusiasmada a admirar o seu novo livro ou então de a ver a dedilhar músicas na velha guitarra "Blue Bird" do marido, para apagar a falta entretinha-se a ler o que a doce Matilde escrevera naquelas folhas coloridas.
Um dia os sinos da capela acordaram a aldeia,os gritos de um pai desesperado anunciavam a aflicção, o choro trémulo e a voz que se cala para dar lugar a um intenso pesar. Dulce estava apática e assim permaneceu, os medicamentos tiravam-lhe as emoções mas Joaquim nunca havia sentido tanto a vida.

Num desses meus passeios pelas aldeias de Portugal descobri uma casa antiga, toda em pedra, grande rochedo sobre o verde, entrei abismado com aquela grandiosidade, perguntei à senhora se podia visitar a casa, disse-lhe que estava a pensar comprá-la e ela deixou-me estar à vontade. A casa era mágica, na parede da sala a fotografia a preto e branco do brasão da família, "Casa do Vale", em cima da mesinha um pequeno conjunto folhas coloridas agrafadas, um diário tosco, "A Menina de Aço", o título estava escrito numa letra diferente, as palavras do diário soavam leves ao entardecer, li tudo de um trago durante uma pausa de respiração e deixei que algumas lágrimas me corressem rosto abaixo, fixei meu rosto no horizonte e pensei "a minha primeira filha chamar-se-á Matilde".


. façam de conta que eu não estive cá .

 
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Margarete
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Enviado por Tópico
ana alves
Publicado: 29/04/2008 17:50  Atualizado: 29/04/2008 17:50
Membro de honra
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Mensagens: 391
 Re: A Menina de Aço
Muito lindo a sua menina de aço... uma pequena grande mulher. Eu tenho ca em casa uma assim . A vida faz nas crescer demasiado rapido. bjs

Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 29/04/2008 18:47  Atualizado: 29/04/2008 18:49
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: A Menina de Aço
Olá Margarete...

Belo conto, descreveste uma realidade
ainda visível nas nossas aldeias serranas/
do interior, onde muito se tem e muito
falta aos seus habitantes...

Parabéns, cada vez escreves melhor...

Beijinhos

Enviado por Tópico
Pedra Filosofal
Publicado: 29/04/2008 20:05  Atualizado: 29/04/2008 20:05
Colaborador
Usuário desde: 17/09/2007
Localidade: Barreiro
Mensagens: 1273
 Re: A Menina de Aço
Um conto a ler dum trago só. Lindo e profundo.

Enviado por Tópico
flavio silver
Publicado: 29/04/2008 20:48  Atualizado: 29/04/2008 20:48
Colaborador
Usuário desde: 24/09/2007
Localidade: barcelos
Mensagens: 1001
 Re: A Menina de Aço
tive a sorte de ler este conto quase em primeira mão e,dizer que gostei, que está bem escrito é pouco para definir a qualidade deste texto onde verso a verso surpreende e nos cativa a continuar.
a margarete sempre nos habituou a isso mesmo, a não dar tudo de uma vez, muda de direção, descobre atalhos e nós,leitores, somos o cão do cigano que vai atrás da carroça.
o fim surpreende.
um beijo.

Enviado por Tópico
Alemtagus
Publicado: 29/04/2008 21:55  Atualizado: 29/04/2008 21:55
Membro de honra
Usuário desde: 24/12/2006
Localidade: Montemor-o-Novo
Mensagens: 3100
 Re: A Menina de Aço p/ Margarete
Matilde não era uma menina triste, a vida é que nunca teve tempo para lhe dar alegria.

Beijo

Enviado por Tópico
Hisalena
Publicado: 29/04/2008 22:35  Atualizado: 29/04/2008 22:35
Membro de honra
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 Re: A Menina de Aço
Um bonito conto que descreve aquele Portugal profundo, escondido e esquecido. É dificil sentir tristeza quando nunca se teve alegria...
Mas lá como em toda a parte só quando se perde se dá valor ao que se perdeu.
Forte essa menina de aço, forte como a vida que a fez crescer depressa demais, sem deixar tempo para cheiras as flores da meninice.

Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 30/04/2008 12:44  Atualizado: 30/04/2008 12:44
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 Re: A Menina de Aço
Tenho uma filha de sete meses e adivinha o nome?
Matilde!
Talvez por isso fiquei colado ao monitor até acabar a leitura, mas esta foi tão fácil, que só me resta agradecer.
Obrigado Margarete.