Crónicas : 

A penumbra do coreto

 
O céu parece efeitos de lumes, de fogos variados a derreter toda a palha dos seus cabelos. Foi como que se de repente ficasse sem a janela do quarto, sem poder avistar a torre e as aves que sem cumplicidades nela poisam.
O quarto gelado ainda não aqueceu, as suas mãos, que outrora eram racionais, agora, são as quem se oferecem para magoar as paredes. Antes estar com uma mulher que não sabe beijar, que morde a boca num despropósito do que pôr um luto em cada palavra que diz.

Não tem sentido a força gasta num esmorraçar. As coisas quietas, os objectos mortos ganham velocidade pelo ar. A raiva ganhou dimensão cósmica desde que a poesia se foi embora.
Cinco anos se passaram, cinco feridas esperando a crosta, cinco mares ganhando fôlego para atacar.

E ele, que nada devia à solidão das marés, ganha bons trocados com os trapos que ela lhe veste. Dedicou-se a ser cigano, a conhecer as ruas ao íntimo pormenor das calçadas, deu o seu corpo aos chãos e neles dormiu com a promessa de nunca mais se levantar. O sonho é apenas uma admiração, um conjunto de folhas que vai apurando e nelas escreve os seus poemas que a natureza editará.
Chamei-o um dia para vir a minha casa, dei-lhe uma taça de vinho e dois bons nacos de pão.

Entre nós apenas olhares havia, um fulminante desejo de acender a sua prosa gestual. No intervalo de dois copos o silêncio terminou com um sopro a dizer “vou-me embora”. A porta, que sempre se mantivera aberta, como se uma invisibilidade tomasse conta do percurso das nossas sombras, a não deixar escapar os ratos sequer, fechou-se, numa pancada de eco vazio.

O homem tentou à força abri-la, mas em vão. Quanto maior era a força menor era a escapatória. Assim, entendeu que por ali não era a sua saída e, em acto ultra-visionário, numa brutal inspiração poética, saltou da janela como um pássaro livre, num voo rápido, em busca de alimento na copa das árvores.

E eu, que pouco entendo das leis da física experimentei as minhas asas e sobrevoei o meu pequeno quintal, acabando por beijar as minhas plantações de couves que muitas sopas me deram, mas que agora, serei eu e seremos nós o quente alimento dos primeiros bichos da terra, o poema que a terra adora.
Afinal eu era apenas uma sombra que não sabia distinguir o sol da madrugada, e ele, era o osso e a carne que me arrastou para o fundo da explicação assobiando com os dedos a penumbra do coreto.
 
Autor
flavio silver
 
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2002
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Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 29/04/2008 21:05  Atualizado: 29/04/2008 21:10
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 A penumbra do coreto para o Flávio
Excelente crónica e esse título é de uma estupidez invejável ( tu entendes!) ...

Parabéns pela escrita e pela imaginação vincada CONTORCENDO * a realidade


Um beijo em ti

* torcer demasiado;

Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 29/04/2008 21:58  Atualizado: 29/04/2008 21:58
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 Re: A penumbra do coreto
Excelente crónica, Flávio!

Sem palavras!

Parabéns

Beijo