Contos : 

uma pomba: que voa, passeia e deita caca no chão

 

O silêncio é uma praia brasileira: com um extenso areal, cheia de turistas que não se entendem, onde os corais vêm dar à costa.

Ficamos calados porque ficar calado é uma forma de o dizer, um protesto contra tudo e contra todos. Não temos nada contra o vento, a menos que ele seja bravo. O silêncio provoca habituamento, não tanto como a poesia.
Lá nas áfricas cospe-se no prato para não roubarem a comida. Fala-se para dentro porque é assim que nos entendemos melhor.
Os funerais são peritos em dizer silêncio. Alguém se ri do morto e é-lhe desejado o pavor.

Se o silêncio tivesse forma seria coisa menos coisa idêntica à silhueta de uma pomba: que voa, passeia e deita caca no chão.
A rapariga perdeu a virgindade e ganhou estatuto de mulher. Agora pode dizer ao mundo que está presente e que conhece a lei do prazer.
Viveu tantos anos a aprender a fórmula secreta do amadurecimento, desfolhando revistas e a excitar-se com homens musculados ao volante de jaguares. Cresceu a pensar que depois dos vinte encheria seu guarda-roupa com tudo do bom e do melhor, que as suas pulseiras seriam oferecidas em actos galanteios.

A rapariga não tem ponta de cabelo espigada. Cuida dele como um gato dedicado ao seu pêlo. Os seus peitos podem mostrar agora ao mundo que são grandes, que provocam burburinhos no café quando ela entra decidida. Quebra-se o silêncio com olhares de maladragem.

O cão esconde o osso na terra e vai a correr espreitar a rapariga que está a crescer atrás da fabrica antiga, com um homem em cima dela. Cresceu mais um segundo que daria para bater record à imaginação.
Pensa que aos trinta vai ser mais tenra que o animal que o caçador abateu e trás à cintura. Julga que a noite é um líquido que se dissolve numa camada de beijos e terá mais, Joãos, Josés, Aristides a desejarem-lhe. Que interpretação se pode dar ao silêncio quando apanhamos a nossa mãe nua a sair do chuveiro?

A rapariga vai fazer quarenta e sete anos no próximo mês e acha que a sua boca meteu-se um cêntimetro mais para dentro. Olha o seu corpo com desdém e fuma ganzas para embelezar o seu estado de alma.
Antes que venha a idade em que não conseguirá prender o chi-chi, antes que a zona dos olhos escureça e, decididamente, se pareçam com uma folha amarrotada, a rapariga decide casar-se com um marmelo que acabou de dar tropa e lá aprendeu a fazer guerra ao silêncio.
Era uma vez uma rapariga petulante que agora é uma mulher que voa, passeia e deita caca no chão.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Fhatima
Publicado: 12/07/2008 04:36  Atualizado: 12/07/2008 04:36
Membro de honra
Usuário desde: 12/02/2008
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Mensagens: 3336
 Re: uma pomba: que voa, passeia e deita caca no chão
Olá Flávio!
Teu texto és de conteúdo forte e proibido, tocante, sensual e realista, mas extremanente poético, demosntras grande maturidade ao abordar sobre a vida, és incrivelmente direto e de uma abordagem direta nua e crua, parabéns pelo texto!
Abraços!
Fhatima


Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 12/07/2008 20:41  Atualizado: 12/07/2008 20:41
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
Localidade:
Mensagens: 4246
 Re: uma pomba: que voa, passeia e deita caca no chão
Gosto demais dos teus escritos, és um observante,
a realidade dura exposta de maneira poética sem
perder o prumo, o objetivo. Uma estória que devemos escrevê-la com h, história pois é bem parte do nosso dia-a-dia.Beijos!



Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 13/07/2008 12:37  Atualizado: 13/07/2008 12:37
Colaborador
Usuário desde: 10/02/2007
Localidade: braga.
Mensagens: 1199
 uma pomba: que voa, passeia e deita caca no chão para o flávio
possas flávio.
é vir aqui ler-te e deixar-me arrepiar pela qualidade literária. és um mestre. obrigada pelo que escreves e pelo que fazes por este portugal cada vez mais entupido de frases sem sentido.
tu és o senhor das palavras. escrevi-te um texto/conto, enfim seja o que for, em breve coloco-o aqui. espero que gostes.
és uma fonto de inspiração. poço de conhecimento nesta vida.
contador de histórias e sóis.

beijo em ti
saudade
mar