Prosas Poéticas : 

GAIOLA VELHA

 
À mínima distração do tratador
O pássaro deu de asas e se apartou da gaiola velha.
Pousou no galho mais alto da palmeira,
Lá onde a seiva alimenta a última célula.
Ficou imóvel por um tempo,
Sentindo o vento eriçar-lhe as penas claras;
Não se lembrava de ter tido essa sensação um dia.
Olhou a pradaria vasta e limpou o biquinho de lacre
Antes de alçar um vôo magnífico e tão esperado.
Enquanto voava lembrou-se das mãos do tratador
Colocando-lhe a fruta espetada
Numa das hastes da gaiola velha;
Teve saudade daquelas mãos,
Mas essa saudade era boa, uma lembrança tênue,
Quase imperceptível.
O que lhe enchia a alma de ave agora
Eram os matizes daquela tarde em que renascera,
O céu de um azul turquesa límpido,
Com nuvens salpicadas,
Como acontece sempre nos meses de abril.
Visitou as pedras do riacho cantante
E as flores que por ali beiravam,
Encheu o peito de ar fresquinho e cantou como nunca.
Os outros bichos que por ali passavam
Pararam por um momento para ouvir a melodia.
Vagou feliz pelos campos
E provou minhoca pela primeira vez
Num banquete solitário, contudo saboroso.
Rolou pela terra e comeu fruta madura.
Dormiu com outros pássaros na madrugada fria.
Assim foi por longos dias experimentando o novo,
As coisas que sonhava lá da sua gaiola velha.
Ah...a gaiola velha...
Teve vontade de ir vê-la.
Apontou o bico na direção do instinto e partiu.
Voou o mais rápido que pôde,
Atravessando os campos a sua frente,
Até que avistou ao longe o sítio antigo,
As criações que ele bem conhecia,
Os ruídos que eram-lhe peculiares.
Deu a volta na casa e pousou no muro da varanda;
Assustado olhou a gaiola velha pendurada.
Lá dentro um pássaro parecido com ele
Comia a frutinha pendurada na haste
E piava calmo enquanto comia.
Olhou pela fresta da porta da cozinha;
O tratador fazia sua sesta.
A cadela Jurema ressonava no capacho.
Ele pulou do muro para o telhado,
Olhou a sua volta... novamente para a gaiola velha...
E pela primeira vez experimentou melancolia
Na sua alma de pássaro.



Frederico Salvo.


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FredericoSalvo
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 18/07/2008 13:45  Atualizado: 18/07/2008 13:45
 Re: GAIOLA VELHA
Meus sinceros parabéns pela BELEZA de prosa!
Abraço
Edilson


Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 18/07/2008 14:23  Atualizado: 18/07/2008 15:04
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: GAIOLA VELHA
Este texto poético está simplesmente
fantástico!!
Chega a ser comovente como através de um
pássaro, nos refugiamos nas memórias para sentir
essa mesma sensação de vazio, quando ganhamos
determinadas coisas em detrimento de outras...
A vida é feita de opções, o pássaro fez a dele,
mas nem sempre quer dizer que com isso consigamos
a felicidade na sua plenitude. Não é verdade?
A complexidade maior reside nesse paradigma!
Um abraço, Vóny Ferreira