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Passa a Vida ..

 
Passa ao longe o NileDutch carregado de contentores. Orgulhoso da pintura recente, a cor brilha no brilho do rio, que brilha do brilho do Sol. Rio que o empurra ao destino. Outro, mais pequeno, de passageiros faz a enésima travessia desde que aqui estou, sentada. A esplanada agradável, o rio como pano de fundo, Cristo de braços abertos a dizer-me “tem calma”.
A música faz-me sorrir. Há alturas na vida em que tudo parece sentir que tem, de propósito, que vir de encontro ao nosso sentir. You didn’t know how to love me .. murmura uma voz quente, provavelmente negra, matizada de um blues indefinido com acordes de guitarra.
Solícito o empregado pergunta-me com um ar levemente pesaroso “que vai ser menina?”, acho que as mulheres sozinhas em esplanadas merecem, provavelmente, aquele ar de .. pena.
Peço um folhado de queijo de cabra. Gosto de folhados. Aprecio queijos no geral.

Virgínia Wolf diz-me, no livro que me acompanha: “automóveis, camiões e autocarros ou carrinhos de mão deslizam por nós como peças de um puzzle, puzzle que nunca chega a completar-se por muito que o observemos”. À minha frente uma mesa com um garoto acompanhado pelo pai. Fala ao telefone e pergunta quanto tempo mais mamã? A resposta ensombra-lhe o olhar, sentimento que hábil afasta rapidamente com uma miradela ao Pai na certeza que não o percebeu.
Ao meu lado, a rapariga belisca a perna do companheiro. Por detrás dos óculos escuros vi que me fitava. Tempo demais, achou ela. A senhora que não cabe no vestido às flores que não entendo porque adquiriu, come, à mão, um hambúrguer que escorre gordura enquanto mergulha num monte de maionese as batatas fritas que o acompanham. No estado sensitivo em que estou, não tarda mudo de mesa, penso.
De novo o empregado zeloso, o folhado à minha frente, levemente alourado e apetitoso. Tento concentrar-me na Virgínia que o merece. Ela e a descrição fabulosa que faz da cidade de Londres em pleno início de século vinte. Não consigo.


A música troca e agora canta Rod Stewart .. a balada não pode ser mais sentimental na sua característica voz rouca e marejam-se-me os olhos. Os óculos protectores cumprem a sua missão, enquanto que o folhado, envergonhado, vai parar ao fundo da mala.
Passa novo porta contentores. O símbolo da empresa brilha ao sol, gentes afadigam-se porão fora.
Ao longe a estátua de Cristo continua de braços abertos.
Imóvel.
Serena.
Já lá estava antes, confio que se manterá assim, depois.

 
Autor
Ana G
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