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Corpo do nada

 
Tags:  solidão    abandono    velhice  
 
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A vida começa a pesar-me, a estrada agreste aproxima-se do seu términos, os meus passos vagarosos e trôpegos deixam um suave rasto na calçada.
A solidão penetra o meu corpo como alfinetes, entorpecendo a pele desidratada. As minhas mãos afáveis encontram o nada…
O sorriso…Ah! o sorriso timidamente desenha-se no meu rosto marcado pelos espinhos da doença…
No meu cérebro ainda existe uma réstia de recordações. Recordo-me de ti, tu que um dia amei e plantei-te no jardim da minha existência sem nunca saborear o néctar desse amor. Tu que o passado sopra como uma brisa cortante mescla de afabilidade, ainda vives dentro deste meu coração cansado de palpitar.
Fixo o vazio longínquo … o meu olhar deixa transparecer a ânsia do fim, nada me resta neste corpo afadigado…. só a tua recordação.
O que faço então… ainda aqui? Porque não tenho paz? Achas que não a mereço, tu que me olhas do infinito? Porque deambulo neste mar de desilusão sem futuro?
Sinto-me abandonada, marginalizada e improdutiva. A sociedade olha-me como um cadáver ambulante.
O peso da minha improdutividade incomoda o funcionamento materialista de uma multidão egocêntrica e indiferente. O ser humano transformou-se em pequenas células edemaciadas, perdendo o sentido da totalidade, do sistémico… cada célula consome mais e mais, esquecendo a utilidade diferencial para a qual existe…. E eu o que faço ainda aqui?
Da minha velha cadeira, desbotada e gasta olho o mar….espero o início que não chega, só me resta a tua recordação, o teu sorriso brincalhão, a tua voz doce…
Permaneço assim, até que a minha “fiel amiga” me leve no seu manto de luz, transformando-me em pó.

Escrito a 14/08/08
 
Autor
Liliana Jardim
 
Texto
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/08/2008 14:02  Atualizado: 14/08/2008 14:11
 Re: Corpo do nada
O que li aqui foi um grito bem alto ao mundo..pelo alheamento aos que sofrem apos uma vida em que deram tudo e recebem tão pouco.

O que fazes aqui?

"Recordo-me de ti, tu que um dia amei e plantei-te no jardim da minha existência"


Uma existência plena de sentimentos, onde eencontras a tua alma e defines a tua continuidade.

Gostei muito deste texto Liliana...muito bem escrito

Um beijo

Dolores

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/08/2008 14:05  Atualizado: 14/08/2008 14:05
 Re: Corpo do nada
Belo humanismo assima de tudo.
Abraço
Anne

Enviado por Tópico
João Marino Delize
Publicado: 14/08/2008 14:12  Atualizado: 14/08/2008 14:12
Membro de honra
Usuário desde: 29/01/2008
Localidade: Maringá-
Mensagens: 1906
 Re: Corpo do nada
O final da nossa vida é assim mesmo. Muitas vêzes não queremos acreditar na realidade. Melhor que isto só se fosse desenhado. Nota máxima!

Abraços

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/08/2008 14:17  Atualizado: 14/08/2008 14:17
 Re: Corpo do nada
Ainda assim, vc tem uma bela visão diante dos teus olhos: o mar...e nele existe aquela linha do horizonte, que separa o céu da água...tudo a seu tempo, minha querida....um belo desabafo. Bjo.

Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 14/08/2008 14:58  Atualizado: 14/08/2008 14:58
Colaborador
Usuário desde: 28/12/2007
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Mensagens: 1801
 Re: Corpo do nada
Liliana,

lindo texto este que rasga o horizonte para lembrar a morte, a Terra, o céu, que nos contemplam desde o primeiro instante. Nós fazemos parte deste maravilhoso Universo, com algum tempo, indeterminado, para o contemplarmos também.
Beijos.

Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 14/08/2008 15:15  Atualizado: 14/08/2008 15:15
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
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Mensagens: 11076
 Re: Corpo do nada
Lili querida,
Retratas divinamente o peso do passar dos anos e do complexo de improdutividade que obriga os idosos a falar consecutivamente da morte e a vê-la como se se tratasse da libertação de uma vergonha que estão a viver, afinal, por terem tanta experiência de vida.
Bjs
Nanda

Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 14/08/2008 20:22  Atualizado: 14/08/2008 20:22
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: Corpo do nada
Belo texto, Liliana, belas reflexões.
Denoto neste texto uma nostalgia de tal forma envolvente, que a interpretaria mais do que um desabafo social, como um grito pessoal, de alguém que está num grande sofrimento interior.
Beijos, amiga.
Refugia-te sempre na escrita porque ela será eternamente o bálsamo pata tanto desassossego.
Vóny Ferreira