Crónicas : 

2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS

 
1.

Naquela manhã, em sua coluna no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade parecia aflito. Motivo: um grupo de alunos do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da PUC (Pontifícia Universidade Católica) enviara-lhe um calhamaço de folhas contendo um estudo interpretativo de alguns de seus poemas. Diante de tantas figuras de linguagem, o poeta não se conteve e desabafou: "- Meu Deus! Meus pobres poeminhas! Estou me sentindo o pior dos monstros diante destes nomes: hipérboles, silepses, metonímias e sei lá o que mais. Mal conheço o significado dessas coisas. Eu achei as imagens bonitas e quis transformá-las em poemas. Mas não pensei em nada disso."
O poeta tinha razão. Os teóricos são pretensiosos, chatos e pouco criativos.

2. Mario Quintana, solteirão de carteirinha, passou a vida morando em hotéis, na sua Porto Alegre. Isto depois de relativamente famoso. No tempo das vacas magras, tinha de se conformar com espremidos quartos em pensões baratas. Certa noite, o poeta de Esconderijos do Tempo chega na pensão completamente bêbado. Tropeça em tudo. Faz um barulho infernal. Os cães de estimação da dona da pensão começam a latir. A senhoria, assustada, abre a janela. Quintana, dedo em riste, dispara dezenas de palavrões aos cães.
- Sêo Mario, o senhor um homem tão culto, dizendo estes nomes horríveis?! - diz a dona da pensão.
O poeta, arregalando seus olhinhos muito vivos, não perde a viagem:
- Desculpe-me. Mas a senhora não entendeu o que seus cães estavam me dizendo.

3. Época da ditadura militar no Brasil. A palavra liberdade aparece em todos os muros. Some-se a isto a Trilogia de Sartre, Os Caminhos da Liberdade, talvez não tão lida, mas muito discutida, entre intelectuais e estudantes. Antônio Maria, cronista, jornalista e compositor de clássicos da música popular, como Ninguém me Ama, Manhã de Carnaval e Valsa de uma Cidade, é interpelado. Querem a sua definição de liberdade. Já meio tocado pelo santo malte escocês, o gordo Maria, autor de frases memoráveis, não pensa duas vezes:
- Liberdade é poder cagar de porta aberta.
Mais tarde, a frase de Antônio Maria seria atribuída equivocadamente a Vinícius de Moraes, que a repetiu, durante entrevista, à uma jovem repórter, que por sinal ficou escandalizada com o Poeta da Paixão.

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Júlio Saraiva

 
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Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
flavio silver
Publicado: 15/08/2008 13:39  Atualizado: 15/08/2008 13:39
Colaborador
Usuário desde: 24/09/2007
Localidade: barcelos
Mensagens: 1001
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
julio este foi um momento brilhante de literatura, com todos os minerais possíveis de se extrair de um sentimento.
gostei, claro, e muito.
parabéns.
abraço.


Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 15/08/2008 13:46  Atualizado: 15/08/2008 13:46
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
Meu querido, mais três razões para gostar de te ler, tu nos trazes textos sérios de ler. Obrigado
Beijos


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/08/2008 13:58  Atualizado: 15/08/2008 13:58
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
É nestas coisas que sinto o Brasil tão perto, tão meu. Parabéns. Abraço


Enviado por Tópico
Bruno Sousa Villar
Publicado: 15/08/2008 14:01  Atualizado: 15/08/2008 14:01
Da casa!
Usuário desde: 09/03/2007
Localidade:
Mensagens: 429
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
Momentos deliciosos de vidas.O do Quintana é absolutamente de criança (génio).


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/08/2008 14:16  Atualizado: 15/08/2008 14:16
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS/Júlio Saraiva
...

caro Júlio,

de Quintana em Quintana, salve-se a escrita!

um bom de um sacana, faz até com que sacripantas se queiram afirmar fãs.

imagino o quanto o bom do Quintana se ri lá onde está, ao observar tão abjectas manobras.

(o meu comentário pode não fazer qualquer sentido, por certo o não fará, mas é, do obvio despido, isso é certamente)

abraço.


Enviado por Tópico
jessé barbosa de oli
Publicado: 15/08/2008 14:20  Atualizado: 15/08/2008 14:22
Da casa!
Usuário desde: 03/12/2007
Localidade: SALVADOR, Bahia
Mensagens: 334
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
ESTA DESMITIFICAÇÃO DOS GRANDES POETAS É GENIAL,
JÚLIO. OS POETAS SÃO GENTE DE CARNE OSSO,
SÓ QUE DOTADOS DE UMA SENSIBILIDADE APURADA.
O PRÓPRIO VINÍCIUS XINGAVA PRA CARALHO:
ISTO FICA CLARO QUANDO SE ASSISTE A DOCUMENTÁRIOS
QUE APRESENTAM O POETINHA EM DIÁLOGOS
DESCONTRAÍDOS COM AMIGOS.
PARABÉNS, JÚLIO, POR MOSTRAR QUE O SENSO DE NORMALIDADE ´DOS
POETAS É MAIOR DO QUE AS PESSOAS PENSAM.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/08/2008 14:27  Atualizado: 15/08/2008 14:27
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
Perfeito esse texto! Quintana, Drumond, livrai-nos dos téoricos (fiscais do subjetivo, do singular manifesto das almas poéticas). Livrai-nos dos pseudo-intelectuais, incapazes de extrair um único verso, branco, simbólico de uma emoção. Livrai-nos!
Beijo.


Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 15/08/2008 15:52  Atualizado: 15/08/2008 15:52
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11076
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
Caro Júlio,
De facto os teóricos são enfadonhos e pouco estimulantes.
A poesia é para mim a expressão pura da liberdade, de outra forma não faz sentido, se o poeta se limitar a figuras de estilo, não consegue pôr eloquência naquilo que escreve.

Reafirmo o prazer que tenho em ler-te.
Abraço
Nanda


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 15/08/2008 19:40  Atualizado: 15/08/2008 19:40
 Re: 2 POETAS E 1 CRONISTA: 3 CASOS SÉRIOS
O sentido de humor, à flor da pena.

DM