Poemas : 

DO CADERNO DE ANNABÁRBARA

 
às vezes esqueço que sou mulher. às vezes esqueço que estou no brasil: entro num botequim vagabundo. peço conhaque barato. entorno de um gole só. acendo um cigarro. meus olhos viajam. agora estou vendo o mar de ipanema. peço mais outra dose.machos de merda ficam me olhando. nunca vão me comer. não sei se olham o jeans surrado, os meus tênis sempre sujos, a minhas tatuagem nas costas, que a camiseta regata não esconde. acho que desejam apenas a minha bunda. machos de merda. depois ficam horas no banheiro dos lugares mais nojentos que habitam.não sabem nem sonhar. não enxergam as lágrimas dos meus olhos, salgadas como o mar de ipanema. quando eu tinha 15 anos e apareci com este dragão tatuado nas costas, minha mãe me disse: - "Bárbara, você é um caso perdido."pouco antes de me mandarem para a frança, minha mãe achou a metade de um baseado e uma caixa de camisinha dentro da minha mochila: "- Bárbara, você é um caso perdido", ela repetiu.quando eu voltei de paris, grávida de um homem vinte anos mais velho, mais uma vez ouvi minha mãe dizer: "- Bárbara, você é um caso perdido."quando eu soube que o meu filho estava morto dentro de mim, repeti para mim mesma: "- Bárbara, você é um caso perdido." eu queria morrer com o meu filho. na verdade, morri um pouco. minha avó disse que era castigo de deus, e eu passei a sentir nojo de deus, porque não achava direito aquele que tudo criou, como dizem, roubar de mim o meu bem mais precioso. só quando minha irmã mais nova me emprestou seu colo para eu chorar, eu descobri que nem tudo estava perdido. e disse comigo mesma: "-Bárbara, a vida não é um caso perdido."me lembrei que tinha dezessete anos. e assim continuei vivendo. e assim continuei e continuo - escracho do meu escracho.

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publicado sob o pseudônimo de annabárbara


Júlio Saraiva

 
Autor
Julio Saraiva
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/08/2008 19:04  Atualizado: 20/08/2008 19:04
 Re: DO CADERNO DE ANNABÁRBARA/Júlio
...

e quando as palavras falam de si mesmas, e quando há arte no juntá-las, nascem cadernos que são verdadeiras antologias, mesmo que, sob a forma de gritos.

abraço.


Enviado por Tópico
Bruno Sousa Villar
Publicado: 20/08/2008 19:20  Atualizado: 20/08/2008 19:20
Da casa!
Usuário desde: 09/03/2007
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 Re: DO CADERNO DE ANNABÁRBARA
É um texto arrancado a ferros ensanguentados.
Só desconheço o que seja um "escracho".Desculpe-me a ignorância.




Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/08/2008 22:02  Atualizado: 20/08/2008 22:02
 Re: DO CADERNO DE ANNABÁRBARA
Me lembro bem da paixão que nutria por Anna bandida. Nunca mais consegui ouvir 'Adios Nonino' de Piazzolla sem chorar um rio.
Não resisti Júlio, mas adoro essa bárbara escrita, com perdão do péssimo trocadilho. beijo, ave.


Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 20/08/2008 23:47  Atualizado: 20/08/2008 23:47
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11076
 Re: DO CADERNO DE ANNABÁRBARA
ANNABÁRBARA,
é um nome com uma carga no pseudónimo de um personagem de mulher jovem mas sofrida que malgré as adversidades continua arranjando alento para levar a vida adiante.
Tem tudo para arrebatar audiências.
Super bem escrito, por quem é da arte.
Bjs
Nanda


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/08/2008 18:29  Atualizado: 21/08/2008 18:29
 Re: DO CADERNO DE ANNABÁRBARA
Um texto, Júlio que prá mim seria a base de um excelente romance.Escrito à perfeição. Há perdição, realidade, poesia, esperança...
Afeto,
Sandra.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 19/12/2008 01:13  Atualizado: 19/12/2008 01:13
 Re: DO CADERNO DE ANNABÁRBARA
Uma voz impressionante, tem tanto sentido que embarga os olhos de quem ler, quero mais dessa saga!