Contos : 

a amante da praia norte

 
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Espraiava o olhar na vaga, na água que se quedava e escoava no areal a seus pés. Depois, numa lentidão de chumbo, elevava os olhos, prosseguía a neblina que, do Leste, invadia a espaços a praia despida em fim de tarde.
Uma lágrima teimava em toldar-lhe o olhar. Insistia em queimar-lhe a íris de igual cor. Do mar. Do céu. Da neblina da tarde. Indefinido.
Cabelos recobriam-lhe a boca salgada. Um vazio mordia-lhe as entranhas, afogava-lhe os pulmões num rumor de palavras trocadas nos dias últimos. Como esporões, retalhavam-na sem dó nem piedade. As memórias ecoavam no vazio das grutas calcárias a seus pés … iam e vinham. E não as entendia. Ora eloquentes, apaixonadas, ora desprovidas de sentido, angustiadas. Num movimento oscilatório sem cadência certa. Desconcertante.
Ao lado, pescadores de linha, acomodavam o fruto da sua jornada nos baldes plásticos. Aqui e além, uma gaivota, em voo picado, despenhava-se vinda de algures, por sobre a babugem das águas. Buscavam alimentos, restos de faina. Depois, subia no horizonte e voava, a perder de vista. Sulcava o céu longínquo.
Havia um “mau tempo no canal”. Havia fola que impedia a atracagem. O Cabo Avelar não se fizera sequer ao mar. Em terra, passageiros sazonais, ocasionais, tal como ela, não haviam tido outro remédio que não o da resignação. De bilhetes já em posse, ouviram do Mestre que a viagem não seria realizada, por más condições de amaragem e que o dinheiro seria devolvido.
Espalharam-se lentamente no cais, por entre redes rotas e transeuntes. Alguns aproveitaram e visitaram o Forte, as muralhas, a Igreja de S. Pedro, outros, a sua maioria, dirigiram-se à praia e por lá ficaram. Em grupos. Solitários.
Eduarda pegou calmamente no saco de ráfia, velho de séculos, e, sem saber que fazer ao tempo caminhou errante pela Península. Deambulou, do porto e cais de embarque, a Oeste, às falésias norte. Por entre ruelas desconhecidas. Por entre gentes. Tentou prender o pensamento que vogava livre e magoado.
Por fim, deu por si, na zona da Papoa. Arvorados à falésia, mais pescadores tentavam a sorte. Continuou a caminhar até atingir a ponta da península. As escarpas, as falésias. As falésias calcárias… O saco pesavam. Toneladas.
Lera algures, que aquelas falésias contavam uma história de milhões de anos de evolução geológica, situada no Jurássico inferior de Portugal. Lera e, via agora que, tal como em sua alma, também aquelas rochas tinham registos indeléveis em camadas sobrepostas. Profundas.
Estava agora no Sítio da Ponta do Trovão, na Costa Norte. Esbarrava na sua própria trovoada interior. Nas suas memórias. Na sua solidão. Na solidão que, por um tempo curto, Adriano parecera capaz de por um fim. Por um tempo, Adriano lhe pareceu o sol a brilhar, a navegar bolinas no pranto de seus olhos. Capaz de lhe dar a paz que tanto necessitava. De por fim à solidão que sempre sentira em sua vida. Por uns tempos …
E, não obstante, sentia-se naquele momento, muito, mas muito mais só. Terrivelmente só. Tudo não passara de uma ilusão. Uma miragem. Um devaneio. As palavras, o amparo que lhe oferecera era, sabia-o agora, ilusório.
Adriano, o “seu Adriano”, era um homem dividido entre o ser e o dever. O ser que o habitava, que lhe queimava a pele em turbilhões orgânicos e, o dever, o dever que a si mesmo impunha, se impunha, de ser o chefe de um clã que girava à sua volta. Que lhe retirava toda a energia. Adriano, um ser maravilhoso. Eduarda sentira-se honrada quando o sentiu a aproximar-se de si. O seu ego maravilhava-se com as ternuras com que a envolvia. Com as ousadias com que a conquistava. Como se fosse uma estrela, que desejava sua.
Eduarda fora uma estrela em sua vida. Talvez, sem que disso não tivesse consciência, fora punção mágica com que nutrira e alimentara, temporariamente a sua virilidade, a sua masculinidade. E, claro o seu ego.
Culta, independente. Duma beleza calma. Sabê-la ligada a ele, enchia-lhe o ego. Não que disso fizesse alarde – não era da sua natureza -, mas, intimamente. Não estava em sua mente apaixonar-se. Dela esperava “tudo e nada”. E, no dia em que intuiu a dimensão dos seus próprios sentimentos, optou por se afastar. Seria, em seu entender, o melhor para ambos. Sair de jogo, enquanto tempo. O seu tempo. Não o tempo de Eduarda. Eduarda regrava-se por outras ampulhetas. Estaria com ele para todo o sempre. Sem quaisquer condições que não a de sabê-lo perto. Mas ele decidira por ambos e partira. Num qualquer porto, hoje, amanhã, encontraria uma nova Eduarda,"amante da praia norte" que, à semelhança da que agora vadiava a falésia, a troco de uma palavras de esperança, lhe proporcionassem uma temporária ilusão de virilidade. E nada mais.
Eduarda…
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O olhar detalhava o horizonte. Um esporão trucidava-lhe a garganta. Sem rumo entrou pela água … uma neblina cobria toda a praia. A buza anunciava o mau tempo no Canal…


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Autor
Mel de Carvalho
 
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