Contos : 

Voar em "V"

 
Há muito tempo atrás, não existiam andorinhas na minha vida!... Minto!... Existiam as que, penduradas de asas abertas, contra a parede branca, enfeitavam a casa da minha infância.
No Verão, quando o Sol impunha a limpeza e o aprumo, também elas eram conduzidas a um mergulho reparador, num qualquer alguidar de barro ou celha.
Na minha inocência imaginava o sofrimento a que eram votadas, horas a fio, de molho – barrela como se dizia à época -, a granel com um infindável número de objectos diversos, de decoração: azulejos pintados com dizeres, borboletas de barro, flores de plástico, etc., todas aguardando a vez de serem devolvidas ao seu lugar, não sem antes a parede ter recuperado o alvo da sua dignidade, recoberta com cal a largas pinceladas.
Nessas tardes de estio, introduzia as minhas mãos de menina na água suja, onde estavas mergulhada, tacteava e procurava-te. Procurava-te!
Conhecia-te os contornos, o volume, o tamanho. Distinguia-te, de todos os outros objectos submersos na barrela. Conhecia-te a forma, de tantas horas que te admirara ao de longe, suspensa que estavas sobre a porta principal. Tal como as tuas irmãs, também agora mergulhadas e submersas, tal como elas, tinhas a parte superior negra, negro profundo, reluzente ao Sol, reflexos azuis, uma cauda em “V”, com filamentos fulgurantes. O teu lado negro... O lado branco - o peito, a parte anterior das asas, tal como a barriga, o ventre, as entranhas -, a mim parecia-me sempre levemente rosado. Branco rosado!... Mas o que te tornava única, era sem dúvida a face avermelhada, ruborizada! Em resultado da minha admiração constante, imaginava! E, era essa a magia que nos unia. A tua inocência de andorinha, a minha inocência de menina... A tua beleza, essa, encantava-me, fascinava-me, diria agora, volvidas tantas Primaveras...
Quando estavas suspensa – inacessível aos meus afagos, mirava-te e remirava-te... Desejava que um golpe de vento, uma brisa da tarde, te fizesse tombar no meu regaço. Então colocava-me de bibe azul céu aberto, por debaixo do teu poiso, para que o tombo te não fosse doloroso. Mas não, tu continuavas lá, no teu lugar de sempre, e eu voltava, dia após dia, para te admirar e tu, acho agora, esperavas o fim da tarde para os nossos reencontros.
Falávamos uma linguagem desconhecida dos comuns mortais – a língua das “meniaves” num código só nosso, onde os silêncios e os tempos se mediam para além dos compassos dos relógios – do relógio de cuco -, que lá na sala grande trinava (impondo o meu regresso à família), do relógio do torreão da aldeia, com as suas oito badaladas – a hora do jantar!
Nesses tempo em que a linguagem era “meniave”, imaginava ter-te nas minhas mãos de menina, aconchegar-te no meu calor, no calor do meu peito, como fizera um dia com o estorninho bebé que caíra do ninho...
Mas não! Durante meses a fio, permaneceste sobranceira, colada à parede, indiferente ao chamamento do meu coração...
De repente, ali estavas tu, na celha de lavagem, quase a fundares-te num mar revolto. Não por um golpe de vento, ou uma brisa... pela mão dos homens, pela mão de uma mulher, talvez...
Nessa tarde de estio, finalmente, encontrava-te! Tomava-te nas minhas mãos, afagava-te lentamente, retirava-te o excesso de água, que te havia inundado as entranhas, colocava-te em água limpa, retirava-te os restos de sujidade, com um infinito carinho, um imenso cuidado.... de leve, de mansinho.... sem pressa, como só as crianças sabem tão bem fazer....
Limpa, resplandecias ao Sol! O brilho azul azeviche das tuas asas abertas, ofuscava-o, diminuía-o aos meus olhos, como que me cegavam de tanta beleza.
Paralisavas-me os gestos, fazendo com que tudo o resto, se perdesse para além do agora.
Recordo que nessa tarde, por breves instantes, cerrei os olhos e desejei que me levasses para o teu Mundo, feito de argila e pó....
Cerrei os olhos, não sem antes te aconchegar no calor da minhas mãos, dispostas uma sobre a outra em concha – uma espécie de ninho de amor, branco e imaculado, tal como a parede a que desejavas voltar a ser suspensa, a parede para a qual, a qualquer instante voltarias a voar...
Cerrei os olhos, com força! Cerrei os olhos e os dedos, que aos poucos, se foram entre-juntando, entre-cruzando, numa malha humana, aprisionando a minha andorinha.
Sempre de olhos cerrados, desejei que aquele momento fosse para sempre.... A minha andorinha era, naquele instante, prisioneira do meu ser!
As minhas mãos de menina, haviam apreendido uma força da natureza! Um ser minúsculo, que viajava dias a fio, em busca de um poiso seguro para construir o seu ninho...
Desejei que aquele instante não acabasse, que,  para todo o sempre, no tempo dos tempos, menina e andorinha se fundissem em uníssono, sob o Sol de Verão. Aprisionei-te com tanta força, que as marcas das tuas asas, ficaram marcadas em forma de “V” nas palmas das minhas mãos...
Mas não! …
Não consigo imaginar sequer uma razão e contudo, sob a minha pele quente pelo Sol de Verão, as tuas asas de barro, aos poucos começaram a tomar vida, começaram a debater-se com a energia do amanhecer...
Recordo como o teu peito, contra a palma da minha mão esquerda, arcava, e como o teu bico irrompia pelo orifício formado pelo polegar e indicador... Como do teu bico, mudo até aí, aos ouvidos dos humanos, saiam os primeiros acordes, algo desafinados, algo incongruentes...
Certo, certo é que a minha andorinha, ganhara vida! E a vida é sempre um dom. Eu tinha, com o meu amor, dado vida a uma andorinha, tinha-lhe dado um dom.
Ao de leve, deixei que o seu corpo recém nascido, saísse de mim, das minhas mãos. Ao de leve, muito ao de leve, como uma brisa de fim de tarde, impulsionei-te o voo, não sem antes te falar dos hábitos das andorinhas de verdade a que, a partir de agora, passaras a pertencer.
Falei-te de como as andorinhas vinham do sul, em longos bandos, de como eram “aprendizes até ao último bater do coração”...
Recordo como esta frase teve impacto e de como ficas-te, durante breves instantes suspensa da minha estória...
“Sim, minha andorinha, as tuas irmãs são animais gregários, vivem sempre em comunidade... vais ter que, também, desenvolver capacidades comunitárias... vais ter que percorrer grandes distâncias, sempre em bando, sulcando os céus, sobre os Oceano... numa espécie de trapézio sem rede, sem um bibe azul de menina, para te apoiar ...”
E continuava...“Sim, minha jovem andorinha, as tuas irmãs sulcam os céus, dispostas em “V”! “V” de “vitória”, “V” de “vigília”, “V” de “vigor”... “V” de “vida”...
Aí, acho que aí, pela primeira vez, vi o teu lado negro:
“V” de....”Vingança”!... disseste-me!
De que te querias tu vingar?... Do tempo que havias passado aprisionada à parede branca, por um prego de metal? De tanto tempo aprisionada num corpo de barro? O meu amor libertador não era suficiente para te ajudar?
“V” de vingança!!” - repetias!
“Não, minha jovem andorinha, essa é uma palavra que não existe no vocabulário das andorinha....” “V” de “ver”... Ver mais longe, ver para além de ver, “V” de “vigor”...
“V” de “vício”, insistias! “V” de “vergonha”...vergonha por viver num Mundo de faz de conta, viver uma vida que se não desejou, um abandono que nos conduz ao “V” de “valeta”, ao “V” de “Vale ou vale...quase tudo” ...
Numa vida onde só existem “vencidos”, poucos são os que desenvolvem voos de “vencedores”... onde a palavra “verdade” só raras vezes tem “valor”...”V” de “vaidades”, vaidades que comandam vidas, “V” de “vexame” a que somos todos os dias submetidos .... “V” de “vicio”, insistias... ““V” de vingança!!”
Sentia as tuas asas a debaterem-se, a agitarem-se, numa rebeldia inconsolada, inconformada.... dorida....
“Não, mil vezes não, as andorinhas da nossa estória - as de que te quero falar - não conhecem vícios; as andorinhas de que te quero falar, desenvolvem o seu voo em vê, em sinal de “virtude” – virtude de dar e receber, virtude de partilhar, amparar, ajudar!...
Sempre, baixinho, insistia:
“Sim, porque as andorinhas, são seres gregários, que vivem predispostas a partilhar, a viver juntas, a gerar família, a amparar a família, a amparar-se na família... Uma andorinha, pode até morrer de solidão, não resistir à solidão de um ninho vazio e frio... A solidão, ou a prisão, têm o poder de matar!
Na verdade, estas criaturas, não sobrevivem sós ou prisioneiras: de si mesmas ou dos outros. Quando tal acontece, em cativeiro, creio que encetam longos voos dentro de si mesmas, mascarados de silêncios finos. Ausentam-se de si e do Mundo, do Mundo que as aprisionou... Entendes de que falo, minha jovem andorinha?
Quando estavas suspensa na minha porta, presa por um prego, que te atravessava as entranhas, confesso agora, ter visto, não raras vezes o teu dorso manchado de lágrimas que tombavam dos teus olhos escuros...
Eram saudades, imaginava! De África! Do colo que todas as andorinhas buscam e necessitam... por isso desejava que tombasses sobre o meu bibe azul, para te poder dar um pouco do meu colo de menina...”
No dia em que impulsionei o teu voo, senti que te estava a perder para sempre! Tive medo de que, à distância de um Oceano, não me lembrasses mais. E, contudo, corri o risco! Correria o risco de novo, uma e outra vez...”
Durante os meses que se seguiram, ao dia em que deste o teu primeiro voo, ensaiavas, voando cada vez para mais longe, durante horas a fio, a tua grande viagem, a que te levaria, para longe de mim pela primeira vez.
Durante esses voos de treino, que eu observava da minha varanda virada a sul – o sul que tu buscarias no final do Verão -, caçavas em voo, alimentavas-te nos céus e, só voltavas no fim do dia, aquele que fora durante tanto tempo o “teu pequeno Mundo”.
Aos poucos, o frio foi-se aproximando, os dias foram-se tornado mais pequenos, a bola de fogo, caia cada dia mais cedo no horizonte... Tudo em meu redor se preparava para a nossa despedida!
Nessas tardes, vinhas poisar ao de leve, muito ao de leve, no beiral da minha vida. Juntos, traçámos planos para o teu futuro, juntos contemplámos o Sol poente... uma e outra vez, ora em longos silêncios, ora a espaços, no dialecto meniave...
Sei que recordarás para sempre as nossas conversas na língua meniave.... E que, um dia, em jeito de estória, aos filhos que a vida te reservar falarás do dia libertador... E talvez lhe mostres um pequeno tesouro – um fio de ouro que levaste dos meus cabelos...
Nas vésperas do dia em que haverias de partir, falei-te uma vez mais, da importância de voar em grupo, em bando. Poisada no meu ombro direito, bem perto do coração, ouvias o meu discurso embalada na sua musicalidade...
“... O bater das asas de uma andorinha, ajuda a outra que se lhe segue, e assim sucessivamente... A primeira rasga caminho, fazendo com que, a corrente de ar ascendente impelia as restantes a prosseguir – dizia-te de mansinho... Mas o mais importante, minha jovem andorinha, é a certeza de que, uma vez cansada - porque a distância entre Continentes é imensa -, poderás sempre contar com uma segunda para te substituir no comando do voo, e que a segunda contará com uma terceira, e assim por diante, numa cadeia de solidariedades...
Na verdade, minha jovem andorinha, esta é a regra de sucesso no reino das andorinhas, no rumo das andorinhas! A certeza de que não estão/estamos sós, o sentimento de que, atrás de nós, um bando inteiro nos impulsiona o voo, apoia o rumo que conferiremos à nossa vida!...”
Ouviste a minha estória, muito quieta, imóvel, muda.... Viajaste dentro de ti, como quando estavas prisioneira... E tiveste medo!...
Aninhaste-te de encontro ao meu colo, afaguei-te o corpo, recompus-te as penas em sobressalto...
Olhaste-me profundamente, bem no fundo dos meus olhos – verdes, azuis, cinzentos: Verdes-água, azuis-céu, cinzentos de fim de tarde. Verdes mar – o mar que nos afastaria para sempre, o céu que haverias de sulcar o cinzento que deixarias na minha vida...
Sei que, naquele instante,  duvidaste de tudo o que te dizia. Como poderia uma menina de cabelos de oiro, saber das vidas das andorinhas, dos sonhos das andorinhas, das expectativas das andorinhas?
Duvidaste! Sei que duvidaste.... A tua asa afagou-me ao de leve os cabelos, o teu bico debicou-me o pescoço, na base da minha nuca.... Os cabelos de oiro, sob o sol da tarde eram agora prata... O teu bico aprisionou um fio e partiste...
Juntaste-te com mais de cem andorinhas, nos fios de telefone nesse fim de dia e, de manhã, com o raiar da aurora, partiste! Partiram todas, juntas..
Partiram em vê...
Tu a comandar o voo, a comandar o vê... como tanto desejavas!...
Acompanhei-te até onde os meus olhos conseguiram alcançar. Depois, de mansinho, chorei a tua partida, num choro invisível aos olhos dos comuns mortais. Chorei e rezei por ti, noites a fio, quando a bola de fogo entrava pelo mar dentro e tudo ficava bruma, silêncio e nada mais!
Recebi notícias tuas, no outro dia, por outro pássaro migrante!

Em África, quando construíste o teu ninho, de barro vermelho, a cor da tua terra, amassado com o calcorrear dos pés da tuas gentes, no fazer constante de caminhos, caminhando, desse barro, terra/suor/dor – fizeste o teu ninho: um ninho de amor. Nele entrelaçaste, para sempre, um fio de ouro/prata...

Confidenciou-me, esse pássaro migrante que reluz ao sol dos trópicos, distingue-se de todos os demais... De todos, o mais lindo, o mais perfeito, que tem até alguma inveja, de não ter um ninho assim...

Como que por magia, o fio de prata atravessa oceanos. Em cada Primavera que nasce, eis que de novo, na ponta do teu bico, sulca os céus e une Continentes, ligando o teu ninho a um novo ninho onde geras família, e tudo começa de novo.

E assim, ano a após ano, século após século, se repete a lição das andorinhas, que se baloiçam num trapézio sem rede – numa rede invisível de mil fios de prata e ouro, prata e preto, preto e prata.
As andorinhas afinal tinham um lado branco!...


Abri os olhos. Senti o corpo da andorinha de barro nas minhas mãos... De asas abertas em sinal de "V"!
                      Fora um sonho, um sonho de libertação de uma andorinha em cativeiro!

Lx: 2004
___


MT.ATENÇÃO:CÓPIAS TOTAIS OU PARCIAIS EM BLOGS OU AFINS SÓ C/AUTORIZAÇÃO EXPRESSA

 
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Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
MariaSousa
Publicado: 07/04/2007 17:24  Atualizado: 07/04/2007 17:24
Membro de honra
Usuário desde: 03/03/2007
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Mensagens: 4038
 Re: Voar em "V"
Não tenho palavras para comentar este conto. Achei-o de uma beleza singular!
Muito bem escrito, com um conteúdo magnífico que me prendeu em cada palavra.

Parabéns, Mel!

Se pudesses explicar melhor a todos nós em que consite o Projecto Gondola e como poderemos participar/ajudar poderia ser muito interessante.

Obrigado pelo conto.

Bem Hajas!

Enviado por Tópico
Valdevinoxis
Publicado: 07/04/2007 17:37  Atualizado: 07/04/2007 17:37
Administrador
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Localidade: Aguiar, Viana do Alentejo
Mensagens: 2096
 Re: Voar em "V"
O texto, a certa altura, parece uma parede povoada de andorinhas que falam, voam, com idas, vindas e com um "V" enorme de Verdadeiras.
Quanto à tua sugestão, estou em sintonia! Já puseste o Trabis ao barulho?

Valdevinoxis


Enviado por Tópico
Mel de Carvalho
Publicado: 07/04/2007 17:43  Atualizado: 07/04/2007 17:43
Colaborador
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Mensagens: 1562
 Re: Voar em "V" para a Maria e para o LUSO Tds os poetas
Maria, este conto abre o 2º Capítulo de um livro não publicado "Apenas um conto - cerzido ponto por ponto na cadeia dos sentidos", que acabei em Julho passado e que tentei publicar para doar ao Projecto Gôndola. Não consegui publicar. Guardei. Está reservado a esse fim!

O Projecto Gôndola consiste em criar um rede de solidariedades - pessoas interessadas a doar trabalhos literários, dos diferentes tipos: Poemas (singulares ou duetos), contos (infantis ou outros), tendo em vista publicar.
A ideia resume-se em, uma vez publicados os lucros reverterem integralmente para ONG's a trabalhar com crianças. Em África ou em alternativa em Portugal, mas com comunidades Africanas.

Gôndola = Berço!!!

Colo, afecto... educação, pão e educação... tudo! Como te expliquei, as águas dos rios não conhecem fronteiras administrativas e/ou geográficas, dado que existem apenas para nos orientarmos... Ora ai está.

Simples "barcos de papel"... os nossos trabalhos, podem navegar até onde são necessários, numa corrente quente de afectos ... Sem fim.
Podem vir do Brasil, de todos os povos lusófonos, podem vir de onde quiserem vir, nesta teia infinda e maravilhosa.
Aportar dentro deste sonho de menina/mulher e, nas asas da "Andorinha" chegar a África... Voar em "V"...

O desafio é o LUSO agarrar esta ideia.

Eu, amigos apenas a sonhei um dia ...

Ela é de hoje em diante VOSSA!

Nada me faria mais feliz que saber que a “minha Andorinha Sonho” voava finalmente!
Em “V“....


Bjs da Mel