Textos : 

A estupidez é tão velha que já nem escolhe os cegos

 
Corre-lhe a velhice pelas costas abaixo.
Isto acontece sempre que as formas são coisas ditas e as coisas acabam por enformar frases que gangrenam ulceradas.
Ainda no outro dia o tipo falava com o espelho, depois da hora do narciso e comentava que nem a estupidez discrimina. Dá-lhe tanta atenção que nem tenta evitar ignorá-la. Leva um estalo e responde. Acaba por levar outro estalo e depois já nem se cala. Não se aprendem coisas destas quando se cresce ou, talvez, não se aprendam porque não se cresce.
Mistura tudo, bocados de estranho amor com o amor de ser e chega a conclusões ondulantes que se perdem de sentido fora de si. Mas, ainda assim, consegue ver o que diz.
Há dizeres que destoam. Os ditos e os ouvidos quando não são nossos, os deles quando são dos outros... há dizeres que destoam do certo e não se prendem a nada que seja sério. São estes que ficam sempre registados e nunca encaixam.
Há dizeres que destoam e, também, outros que não, que estão colados, que são da mesma cor e sabem sempre ao mesmo. Parecem flores de jardim plantadas em canteiros desenhados à esquadria. São esses que separam as gentes das gentes.
No meio disto, ocorre-lhe dizer que, assim, depressa vai acabar por ficar gasto. É quando sente a velhice a dar-lhe pancada, enquanto lhe desce pelas costas, feita de palavreado cheio com adjectivos e muitas onomatopeias... Pam! Pam! Pas! Tras! Pam!
Dói, decompor-se assim.
Acaba por lamuriar uma ladaínha murmurada... tanto, que é quase inaudível...

Uma palavra calada
Feita de letras mudas,
A boca aberta
Feita de sons e silenciada
Em provações de vida...
Perdida,
O sentir amargo do doce
Que trai o sabor com o vício,
Que mata de forma precoce,
Que mata no o fim do início...
São coisas que moem o ser
Em redemoínhos de suplício.

Sofre o sangue por querer correr
E não ter veia que o aconchegue,
Sofre a carne por querer beber
E não ter sangue que lhe chegue,
Sofre a pele por querer aquecer
E não achar massa que a queira ter.

Fica deitado a pensar, mais uma vez, na velhice. O corpo ainda não o denuncia... pelo menos quando se olha à vista desarmada, desamada, desmamada..
Cegos! Cegos! Cegos! Cego é quem não vê porque não quer. Cegos!
O gajo está lá e mostra-se, clarinho como a água enquanto o gémeo narciso, sempre ele, envaidece com os não defeitos e as palavras caras.
Palavras... palavreado rebuscado elegante, ofegante, com falta de ar, velho, asmático. Depois, lá vêm as onomatopeias da porrada.
Ai.
E a carne que está debaixo da pele? Pois, essa.
A pele lacera-se, a carne macera-se e a velhice cai em cascata costas abaixo, enquanto se agarra aos dizeres que destoam. A estúpida! É sempre assim. Fatalmente assim.
Houve uma altura em que ele tentou revirar os olhos para se ver por dentro e descobrir de tinha forma de rejuvenescer mas desistiu, não fosse lá envelhecer mais depressa, no processo.
E pronto... resignado, guardou-se para o tempo e continuou a palavrear tanto quanto podia.

Valdevinoxis

(este foi inspirado num dizer do Saramago: "A estupidez não escolhe entre cegos e não-cegos" disse ele - http://diario.iol.pt/cinema/jose-sara ... ilme-eua/998076-4059.html)

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A boa convivência não é uma questão de tolerância.


 
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Valdevinoxis
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/10/2008 22:41  Atualizado: 18/10/2008 15:29
 Re: A estupidez é tão velha que já nem escolhe os cegos
Bela parábola sobre a estupidez, a cegueira, a velhice.

Conheço, contudo, velhos, como Saramago, por exemplo, que não são nem cegos, nem velhos-velhos no pensamento, nem estúpidos.
E que se não resignam. E que pensam. E têm mais capacidade para aprofundar o pensamento ( e estou-me a lembrar também de Eduardo Lourenço, e de tantos outros) do que muitos novos (ou que ainda, e só ainda, se julgam novos). E seguem aquela máxima de José Saramago no seu "Ensaio sobre a cegueira": «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.» De facto, como diz Saramago, «a estupidez não escolhe entre cegos e não cegos»: Por certo haverá cegos estúpidos e cegos que são mais inteligentes do que outros que se julgam com olhos de ver e muito inteligentes, mas que não reparam.
E até posso chamar aqui à colação os Velhos de O'Neill. (E que Velhos!).
E já agora, há uma expressão muito usada na minha terra, e velhinha, que diz que «velhos são os trapos.»


: e há os velhos «ab ovo»,
velhos sem posteridade
que nasceram nados-mortos
ou foram tão-só abortos,
esses velhos sem idade.

Domingos da Mota

Receba o abraço da minha prosa/poética.

DM

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 17/10/2008 23:45  Atualizado: 17/10/2008 23:45
 Re: A estupidez é tão velha que já nem escolhe os cegos
Estou aqui a refletir com seu texto, e já li o seu texto do forum tbm.

Permita-me uma opinião profundamente pessoal: Estupidez pra mim é quando um individuo pensa que pode enganar todas as pessoas, achando que está tirando vantagem sobre elas, pensando que elas são cegas. O pior cego é ele mesmo que não consegue ver sua própria cegueira.

Estupidez ainda maior, é quando este mesmo individuo, torna-se inconveniente, intolerável e não possue si-mancol para reconhecer que o é.

*Quero deixar claro que me refiro subjetivamente a um individuo qualquer, apenas para comentar seu texto.


Gostei de ler, bjo.

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 18/10/2008 09:48  Atualizado: 18/10/2008 09:48
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 Re: A estupidez é tão velha que já nem escolhe os cegos
Para aproveitar a deixa da Helen de Rose, refiro-me também a um individuo qualquer, não é necessário ser velho para ser estúpido ou cego, há os nascem com uma ou com outra deficiência ou mesmo com as duas, eu por exemplo, não nasci cego, mas também não nasci inteligente e como dizia o outro, quando reconhecemos os nosssos defeitos, é uma prova de inteligência, mas nem todos o reconhecem!
Abraço
Bom fim de semana

A. da fonseca

Enviado por Tópico
MariaSousa
Publicado: 18/10/2008 14:43  Atualizado: 18/10/2008 14:43
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 Re: A estupidez é tão velha que já nem escolhe os cegos
Entre a prosa e o verso escreve-se a vida.

Gostei do que li.

Bjs