Contos -> Tristeza : 

O conto da cabana

 
Tags:  morte    flor    história    conto    menina    traição    CABANA  
 
No ano de 1982, numa terra esquecida e quase perdida no norte das américas, vivia uma família muito feliz, um homem másculo que vivia no auge da vida após 36 anos de vida, uma mulher ternurenta e invejosa com menos 3 anos de idade, e a filha nascida do amor tempestuoso que viveram, e que já há muito se tinha apagado. A rapariga vivia feliz na casa que chamava sua há mais de três mil dias, partilhando a sua vida com aqueles de que mais gostava, cheirando as flores intermináveis e a floresta que parecia estender-se das traseiras até ao infinito, ou então apreciando de forma mais urbana a cadeira colocada inteligentemente à esquerda da porta de entrada. Era um bom sítio para ver a estrada que dava vida ao sítio perdido no meio da natureza.
A rapariga, cujo nome era, se não me engano, de uma flor abundante na zona, que não sei exactamente qualificar agora, transbordava felicidade, tanto antes como depois de ir para a escola. Não sei o que por lá fazia, mas contaram-me que era uma rapariga desenrascada, apesar de ser um pouco ingénua.
A mãe, mulher no climax corporal em lenta morte sentimental, vivia para a filha, com a filha, acompanhada pelo marido nas horas em que se comia. E que bem se comia... Bom, voltando atrás, a mãe trabalhava um pouco longe de casa, e tinha uma longa viagem que fazia no seu minúsculo automóvel, todos os dias, para ir e voltar, graças a deus, sã e salva para os braços da casa que tinha como porto seguro.
O pai raramente saía de casa, às vezes para ir caçar, e basicamente passava os seus dias numa cabana acolhedora onde fazia os trabalhos de carpintaria que alimentavam a casa, já que o emprego da esposa não chegava para a roupa e alimentação do ego e injecções de confiança de que a pobre senhora desesperadamente necessitava.
Todos os dias úteis, a menina interrompia os seus passeios e brincadeiras inocentes na floresta que chamava sua, para exactamente das 10h às 17h aprender numa escola para ser alguém na vida. O seu pai ficava na cabana, e a mãe repetia o horário da filha, mas longe, demasiado longe para a beijar, cheirar o cabelo, mas suficientemente perto para a amar incondicionalmente. Ela tentava sempre chegar antes da filha, para a receber com um forte abraço, logo à entrada de casa.
A casa e o espaço envolvente era um espaço mágico para a menina, que brincava e imaginava e criava e tinha nome de flor que gostava de colher bem pertinho de casa. No entanto, nunca entrava na cabana, a pedido do pai. Ela até compreendia, pois a profissão do pai devia envolver maquinaria perigosa e ele só a queria proteger. Há melhor demonstração do amor de pai que esta?
Bom, continuamos em 1982, num dia como tantos outros. A mãe partiu em direcção ao sustento das suas frustrações, o pai fechou-se na cabana das suas criações, e a filha partiu feliz e criança para a escola onde lhe ensinavam a um dia ser uma pessoa adulta e responsável.
No entanto, por razão que desconheço, a menina saiu mais cedo das aulas, e em vez de ficar a brincar com as meninas, decidiu ir colher as flores que lhe deram o nome, e partir mais cedo para casa, para fazer uma surpresa ao pai, e talvez à mãe, se em casa já estivesse.
Cantarolou canções felizes pelo caminho, trauteou contentamente pela estrada fora. Chegou a casa, e entrou discretamente, e vasculhou a casa toda sem encontrar o papá. Correu a casa toda, e decidiu ir às traseiras. Também não viu o pai nesse local, e decidiu tentar a cabana onde apenas tinha entrado duas ou três vezes há muito, muito tempo.
Abriu a porta muito lentamente, e viu dois vultos envolvidos sobre a mesa de trabalho. Abriu-a mais um pouco, e a porta emitiu um ruído denunciante, pouco depois de permitir uma iluminação mais eficiente... e também denunciante. O pai estava nu, com uma mulher que de certeza não era a mãe, os corpos envolvidos, líquido de prazer a verter para o chão, nojentamente humilhante para a pobre menina que emitiu um nervoso "Pai?...". Os dois vultos viraram-se em desespero, e o pai prontificou-se em saltar da mesa e chamar pela filha, que rapidamente saltou pela porta fora a correr. O pai seguiu-a, ela correu pela floresta, zigue zague entre árvores, fuga de medo e nojo e confusão. O ramo de flores ficou bem à porta da cabana, esquecido sem ninguém que o agarre, que o cheire, que o ame.
A fuga continuou, por aproximadamente um minuto, até que a menina chegou à berma da estrada e continuou a correr, sem parar, sem pensar no carro que lá vinha. O pai, que ia uns bons metros mais atrás, assistiu a tudo. O carro buzinou furiosamente, sem hipótese de evitar o pequeno corpo indefeso. Colheu-o com tanta fúria que quase o partiu em dois, dois pedaços de nada, dois pedaços de sangue coberto de dois pedaços de corpo. O pai, caído de joelhos, assistiu à mãe, que saía do carro, para observar tragicamente o homícidio involuntário e indirecto que cometeu. O corpo foi atirado para bem longe, ironicamente perto da porta da casa que ela tanto amava. A cadeira que lá estava ficou com quatro pequenos salpicos de amor e de morte. A mãe, aos berros, girou sobre ela própria quatro vezes e ainda mais uma. Olhou para cima, olhou para o corpo da filha que já não o era, olhou em frente, viu as luzes do camião que se aproximava e correu para ele. Decidiu morrer como matou a filha. O corpo foi projectado na direcção contrária da filha, distância de 100 metros que parecia não ter fim. O pai, que continuou de joelhos no chão, lá ficou mais dois minutos, antes de se dirigir à família que já não o era, e chamar o autocarro dos mortos (não lhe gosto de chamar carrinha funerária, afinal é um transporte público, leva muita gente).
O sacana do pai assistiu ao funeral, deitou quatro lágrimas, mais uma e ainda outra, virou costas às enterradas e voltou à vida. Voltou á casa, à cabana, enterrou as flores na floresta dos remorsos, e continuou a comer, quase diariamente, o vulto que sem remorsos se deixou possuir mil vezes mais.

 
Autor
AntonioCarvalho
 
Texto
Data
Leituras
1487
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
2 pontos
2
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 16/11/2008 23:22  Atualizado: 16/11/2008 23:22
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: O conto da cabana
António:está bem escrito e tem muita força.pessoalmente acho dispensável o juízo de valores como consequência do relato dos acontecimentos("o sacana")...gostava mais que se deixasse espaço a várias hipóteses de interpretação... percebes o que quero dizer?uma história deve poder ser vista de diferentes perspectivas e o leitor deve ter a liberdade de a poder interpretar...
independentemente desta observação acho que deves continuar a escrever contos até porque tens capacidade descritiva e um discurso cortante e muito interessante de se ler...o que achas tu?